top of page

“CONFISSÕES DE NARCISO”

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 4 min de leitura

Eu só o conhecia de nome, por isso levei um susto danado quando ele entrou na minha sala pra me encomendar um trabalho: fazer a adaptação para teatro, do livro “Confissões de Narciso”, de Autran Dourado. Foi assim que conheci Newton Lucas, diretor teatral e produtor geral do grupo "Ciranda de Espetáculos". Nessa época, ele se dedicava inteiramente a um projeto inovador: transformar em peças teatrais os romances que naquele tempo se constituíam leituras obrigatórias para o vestibular. Ora, sabendo que a maioria dos alunos detesta ler e vai direto para os resumos, por que não levar aquela mesma história para o palco, e emprestar a ela um pouco mais de glamour e fantasia? Isso, sem dúvida, haveria de despertar o interesse dos alunos, pensou ele. Imediatamente ele tratou de pôr em prática o seu projeto. Sim, porque Newton Lucas era, não só o ‘dono da bola’, mas aquele que selecionava os jogadores, contratava o juiz, vendia os ingressos, jogava, driblava e agarrava a bola... Vivia correndo de uma escola pra outra, contactando coordenadores, divulgando a peça de sala em sala, sempre apressado e reclamando do tempo. Não foi diferente naquele dia. Ele me mostrou o livro, me encomendou o trabalho e saiu, tão apressado quanto entrou. Fiquei ali parada, com o livro nas mãos, sem saber direito por onde começar. Eu tinha que adaptar uma história, só que dessa vez eu não podia me envolver com a produção do espetáculo. Isso pra mim era o mais difícil, pois quando escrevo, acabo fatalmente entrando na história e criando intimidade com os personagens. Gosto de acompanhar os ensaios, de ver minha imaginação criando vida no palco, de participar dos figurinos, cenários, sonoplastia, tudo, enfim, como se fosse um filho que estivesse sendo gerado dentro de mim. Mas daquela vez, eu iria ser, somente, uma “barriga de aluguel”, nada mais.

Mas resolvi topar o desafio. A partir daquele dia e durante as duas semanas que se seguiram, mergulhei fundo no universo de “Tomás de Sousa Albuquerque”, personagem principal daquele livro. Cabia a mim arrancá-lo daquelas páginas antigas e dar-lhe um rosto, um corpo e uma voz. Mas antes, era preciso conhecer-lhe a alma, pois não se pode dar um rosto a um ser sem alma. Acabaria por se tornar apenas um boneco sem vida. E não era aquilo que eu queria para o ‘meu Tomás’. Por isso, comecei a ler com a alma. E à medida que ia lendo e conhecendo ‘Tomás’ mais de perto, mais angustiada eu ia ficando com o sofrimento dele. Tomás era um homem atormentado, que vivia em busca de uma mulher que se assemelhasse à figura feminina presente no camafeu que sua mãe lhe deixara, ao morrer. E nessa busca insana, ele foi conhecendo e se apaixonando por várias mulheres, dez ao todo. E por todas, ele foi traído. Toda essa infelicidade acaba levando-o ao suicídio. Essas confissões, escritas em forma de diário, são descobertas pela sua última mulher, Sofia, que imediatamente decide publicá-las. É exatamente assim, pelo fim, que começa a história de Autran. E foi pelo fim que também decidi começar a minha. Imaginei uma Sofia, de preto, muito discreta e elegante, entrando na sala do editor, trazendo os originais nas mãos. Meio desconfiado, o editor passa os olhos por aquelas páginas, tentando entender aquela letra, confusa e descuidada. E ao ler em voz alta, torna-se, imediatamente, o narrador da ‘minha história’. E enquanto ele lê, as cenas vão se desenrolando no palco, ora mostrando um Tomás velho e atormentado, ora um outro Tomás, novo e apaixonado.

Gosto de escrever ouvindo música, pois isso me ajuda a arrancar a história de dentro de mim. Mas naquele caso, como a história não era minha, eu precisava de uma música que se parecesse com ‘a alma’ do meu personagem... Foi aí que encontrei uma de Paulo Diniz, chamada “Vou-me embora”, que parecia ter sido escrita para o ‘meu Tomás’. E através dos versos doídos de Paulo Diniz, fui narrando o sofrimento do meu pobre Tomás, aquele homem atormentado que via na morte a única solução para as suas angústias...

“Vou-me embora, vou-me embora, nada aqui me resta Senão a dor contida, num adeus sem festa Eu vou na ida indo, que o temor desperta Cuidar da minha vida, que a morte é certa...”

No dia da estreia, entrei como uma espectadora comum, naquele Teatro Tobias Barreto lotado de estudantes. Mas por dentro, estava tensa. Tinha medo de não reconhecer como ‘meus’ aqueles personagens que eu tinha gerado e por quem eu havia me dedicado tão intensamente. Mas quando a cortina se abriu, meu coração se iluminou. Num cenário belíssimo, lá estavam meus personagens, ricamente vestidos e cheios de vida. Foi uma montagem impecável e todos os atores foram aplaudidos de pé. Não sei quem dirigiu nem quem participou daquele espetáculo, mas a lembrança daquele dia nunca se apagou em mim. O único registro que me coube foi apenas um cartaz vermelho com o nome da peça, que durante anos eu mantive, orgulhosamente, enfeitando a parede da sala onde eu trabalhava. Como uma espécie de cumplicidade muda daquele sucesso. Dois anos e meio depois, no dia 2 de janeiro de 2007, Newton Lucas foi encontrado morto em seu apartamento, vítima de um infarto. Assim como o ‘meu Tomás’, Newton Lucas também passou pela minha vida rapidamente, dando-me a impressão de ser somente um personagem que a gente inventa, para viver brevemente, só enquanto durarem as luzes no palco... Subitamente, ‘a festa acabou’, ‘a luz apagou’ e ‘o povo sumiu’. E agora, José? Restaram-me, apenas, os versos de Paulo Diniz:

“Vou-me embora, vou-me embora, vou buscar a sorte Caminhos que me levam, não têm Sul nem Norte Mas meu andar é firme e meu anseio é forte Ou eu encanto a vida, ou desencanto a morte...”

(Lilian Rocha – 19.03.14)


Comments


RECENT POSTS
SEARCH BY TAGS
ARCHIVE
bottom of page