A MADRINHA
- Lilian Rocha
- 16 de ago. de 2018
- 7 min de leitura
Quando a conheci, eu tinha 6 meses de casada e estava grávida de 6 meses do meu primeiro filho. Confesso que não foi um encontro normal, muito pelo contrário. Foi um tanto quanto constrangedor estar frente a frente com ela, a ex-sogra do meu marido. A princípio, eu relutei, mas meu marido insistiu, dizendo que ela sempre o havia tratado como filho e ele não queria cortar vínculos com a família que, por alguns anos, fora dele também. Realmente, ele tinha razão. Mais dia, menos dia, aquele encontro ia acabar acontecendo. Melhor que fosse logo.
O encontro foi na casa de praia dela, onde agora ela estava morando. Era uma casa linda, recém-construída, que ficava na mesma rua do Clube do Banese. Quando meu marido apertou a campainha, meu coração disparou de nervoso. Eu não sabia como ia ser recebida, não sabia sobre o que ia conversar, enfim... O que é que eu estava fazendo ali? Foi ela quem nos recebeu e nos encaminhou até a varanda, onde já estavam Dr. Theotonílio, seu marido, e D. Berenice, sua mãe. Eu entrei atrás do meu marido, completamente envergonhada, tentando esconder minha barriga. Não me lembro de quanto tempo passamos ali, mas lembro que foram os minutos mais longos e penosos da minha vida. Enquanto meu marido conversava naturalmente com os ex-sogros, eu esticava um assunto qualquer com D. Berenice, pra ver se ninguém me notava e o tempo passava mais depressa... Quando voltei pra casa, disse pra meu marido que nunca mais voltaria lá. Eu sabia que, por mais que eu tentasse, minha presença era constrangedora para eles, pois suscitava lembranças muito tristes. E eu não queria ser a causa de mais tristeza para eles.
A filha de D. Luíza, Ana Luíza, fora casada com Austeclino por 4 anos. Além dela, D. Luísa tinha mais dois filhos, mas ela era a única mulher e, por isso mesmo, tornou-se sua companheira inseparável. Quando ela resolveu casar, foi D. Luísa quem cuidou, pessoalmente, de todos os detalhes, desde os móveis de madeira maciça, feitos sob medida, até a decoração mais simples. As duas se combinavam em tudo e a felicidade de uma era a felicidade da outra. Só faltava uma coisa para completar a felicidade: um filho. Mas por razões que fogem ao nosso entendimento, esse desejo não se realizou. Ana Luíza tinha ovários policísticos e, ao se submeter a um procedimento cirúrgico, aparentemente simples, tudo começou a se complicar e dois meses depois, ela faleceu.
Foi uma notícia chocante que parou a cidade, pois ela era de uma família muito conhecida e tinha apenas 29 anos.
Eu conheci Austeclino 7 meses depois, quando ele ainda vivia triste. E me apaixonei por ele nesse mesmo dia, quando o ouvi descrevendo, com os olhos cheios d´água, o casamento feliz que tivera. Nesse dia, eu tive a certeza de que quem se casasse com ele, seria muito feliz. A partir daí, tudo foi acontecendo rapidamente, como se Alguém lá de cima estivesse escrevendo essa história e que, por razões que fogem ao meu entendimento, me tivesse escolhido como uma das protagonistas.
Um ano depois da morte dela, nós nos casamos, com apenas 3 meses de namoro. Algumas pessoas estranharam esse casamento tão rápido, mas a melhor explicação que ouvi para isso foi esta: "Quando um viúvo se casa rapidamente, é porque foi muito feliz no casamento e não consegue ficar só."
Quinze dias depois de casada, eu fiquei grávida. Eu morava numa casa que não era “minha” e estava casada com um marido que não era “meu”. Era essa a minha sensação. Quando alguém se casa com um viúvo, é muito comum a pessoa ouvir de quem os visita: “Nossa, até parece que eu estou na casa de fulano...” Eu ouvia isso constantemente, sempre que um amigo deles ia nos visitar. Sim, porque até os amigos eram só dele e de Ana Luíza, eu ainda não os conhecia. Eles ficavam olhando os móveis, reconhecendo os objetos que haviam pertencido ao “antigo casal” e de repente, alguém mais distraído me fazia uma pergunta sem noção: “Cadê aquele tapete branco que ficava aqui?” Eu sorria, balançava os ombros e ficava sem ter o que dizer. Eu não conhecera o casal e nem havia frequentado a casa deles. Pra mim, que estava “chegando” naquela história, era tudo novo. Mas pra todos que já conheciam aquela história, eu era uma espécie de "intrusa".
Era, portanto, compreensível que eu não quisesse frequentar a casa de D.Luíza. Ainda por cima grávida! Eu não queria fazê-la sofrer, lembrando de quem devia estar ali era a filha dela e não eu. Por outro lado, Austeclino tinha razão em querer manter a amizade com D.Luíza. Ela sempre o tratara como filho. E eu não tinha o direito de afastá-lo dela. Não seria justo. Por isso, vez por outra, nós íamos visitá-los.
E por razões que a nossa própria razão desconhece, cada vez que eu me encontrava com D.Luíza, a sensação era melhor. Parecia que Alguém lá de cima provocava esses encontros, só pra nos ver juntas. Nos aniversários de criança em que ambas éramos convidadas, assim que me via chegar, D.Luíza saía de onde estava só para me receber. Arranjava cadeira pra eu me sentar, chamava o garçom pra me servir, enfim, me cercava de amabilidades. E quanto mais a gente se encontrava, mais crescia o meu carinho por ela. E Deus continuou nos empurrando devagarzinho, uma para a outra...
Nos encontrávamos no dia das mães, no aniversário dela, trocávamos presentes no Natal e ela nunca deixou passar em branco nenhum aniversário dos meus filhos. Passamos a nos encontrar também em todos os dias 30 de novembro, na missa que ela mandava celebrar por Ana Luíza.
Numa dessas vezes, porém, assistimos à missa, mas não a vimos na igreja. Achamos estranho e resolvemos ligar pra ela à noite. Ela então nos disse que tinha sofrido um acidente pela manhã. O marido tinha batido o carro e ela tinha fraturado duas costelas. Estava de cama, imobilizada, e por isso, não pôde ir à missa.
Nessa mesma noite, fomos visitá-la. E nesta mesma noite, eu sonhei com Ana Luíza, me perguntando sobre o acidente e como estava a mãe dela. Eu a acalmava, dizendo que tinha ido visitá-la e que ela estava bem. Na noite seguinte, fui outra vez visitar D. Luíza e contei pra ela o meu sonho. Nessa noite, não tive mais dúvidas quanto ao meu papel naquela história. Até Ana Luíza dava provas de que abençoava a minha amizade com a mãe dela...
Quando fiquei grávida de Letícia, o médico levantou a hipótese de que seria preciso fazer uma cesariana e ligar minhas trompas, já que aquela era a terceira gravidez, os dois primeiros partos foram cesários, o útero podia romper, etc. Fiquei aflita, pois eu queria mais filhos e não aceitava aquele papo de ligar as trompas. Resolvi, então, mudar de médico. E para minha felicidade, ele me disse que eu ficasse tranquila, pois o parto podia ser normal, por que não? E mesmo que não fosse, isso também não seria problema, pois ele já tinha feito até 4 cesárias. Por isso, eu não precisaria ligar as trompas.
Mas confesso que passei a gravidez toda assombrada com a perspectiva do meu útero se romper e eu perder meu bebê. Resolvi, então, como sempre faço nos momentos mais difíceis, apelar pra Nossa Senhora...
Nessa época, a santa do momento era “Santa Terezinha das Rosas”. Segundo a tradição, após a novena, a pessoa receberia, de maneira bem inesperada, uma rosa de alguém. Isso era o sinal de que o pedido seria atendido. Uns quinze dias antes do parto, comecei a fazer a novena. No sétimo dia, pouco antes do Natal, fomos visitar D.Luíza para a troca costumeira de presentes. Como sempre, ela deu presente aos meus filhos, a Austeclino e a mim. E por razões que eu jamais vou saber explicar, resolvi abrir o meu presente ali mesmo. Era um perfume. Um vidro grande transparente de perfume. E no fundo do vidro, lá estava ela: uma rosa enorme pintada. Fiquei alguns segundos olhando aquele perfume, com os olhos cheios d´água, sem acreditar no que estava vendo. Eu não tinha mais dúvidas. Tudo haveria de correr bem no parto e com o meu bebê.
Uma semana depois, minha filha Letícia nasceu. E de parto normal. E com ela, ganhei também a possibilidade de ter outros filhos, como eu tanto desejava. Naquele momento, eu compreendi tudo. E por razões que só eu sou capaz de compreender, resolvi entregar a minha filha para D. Luíza batizar. Aquilo selaria para sempre todo o meu carinho e gratidão por ela.
Hoje D.Luíza completa 90 anos. Já perdeu o marido, dois irmãos e dois filhos. E cada vez que a vida lhe tira alguém, mais ela se faz forte diante da vida. Costumo dizer que sou “sua filha torta”, como uma alusão à maneira estranha e súbita com a qual entrei em sua vida. Entrei devagarzinho, pela porta dos fundos, como se soubesse que aquele lugar não era meu. Mas pouco a pouco, ela foi me trazendo para perto dela, abrindo espaço no seu coração generoso para me colocar dentro.
Quando alguém me pergunta o que ela é minha, eu nunca sei o que dizer. Nunca achei um termo para defini-la. Afinal, ela não é minha mãe, nem minha sogra. Nem é mãe nem sogra do meu marido. Mas ela é a mãe da primeira mulher de meu marido. Uma mulher que ele amou profundamente e que o fez sofrer profundamente quando se foi. Foi desse ponto final que Deus começou a nossa história. Transformou a dor em amor. E em troca, me emprestou uma mãe órfã de filha para que eu aprendesse a amar. E foi com seu amor generoso que ela me abrigou no seu coração.
Nem mãe nem sogra. Uma madrinha. E madrinha nada mais é, que uma “segunda mãe”. Uma segunda mãe que fez de mim uma segunda filha.
Muito obrigada, minha querida D. Luíza, por todos esses 35 anos de carinho sincero e verdadeiro. Tenho pela senhora o mesmo carinho, igualmente inexplicável. E um orgulho muito grande de tê-la presente em minha vida e poder contar a todos essa nossa história tão linda!
Parabéns! E que Deus a abençoe!
Um beijo carinhoso da sua “filha torta”,
Lilian Rocha

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