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A PANELA

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 24 de ago. de 2018
  • 4 min de leitura

Saudade é uma das coisas mais inexplicáveis do mundo. Não tem duração definida nem causas aparentes. Pode durar a vida toda, mas pode acontecer de repente, por qualquer motivo...

Corria o ano de 1984. Eu estava grávida do meu primeiro filho e morava em Recife. E como toda grávida de primeira viagem, eu também estava meio perdida no meio daquela lista enorme de coisas que tinha que comprar para o neném. Neném é uma coisinha tão pequena, mas exige uma parafernália de coisas que até Deus duvida! Para cada item necessário, aparecem milhões de subitens, igualmente indispensáveis, para complementar aquele item. E esses “subitens” quase nenhuma grávida de primeira viagem tem conhecimento... Só mesmo as mães de segunda ou terceira viagem... Ou então as avós de muitas viagens...

Como a minha mãe. Mãe de seis filhos e prestes a ser avó pela quinta vez. Quando eu estava prestes a ter neném, ela foi pra lá me ajudar nos últimos preparativos e nas primeiras semanas com o bebê.

Minha mãe tinha um olhar quase cirúrgico, se é que existe isso. Ela prestava atenção nos detalhes e era extremamente prática, como fora sua mãe. Sabia distinguir o que realmente era importante e o que só seria um estorvo mais tarde. Tinha uma lista invisível de todas as coisas importantes dentro da cabeça que, por mais que eu vivesse, jamais seria capaz de aprender.

Se o item era “fraldas”, por exemplo, não bastavam só as fraldas e os alfinetes. Nesse tempo, fraldas descartáveis era um luxo, a gente só usava na maternidade ou quando ia sair com o bebê. O resto do tempo a gente se virava com fraldas de pano mesmo. E com as fraldas, era também necessário comprar as calças enxutas, a fita crepe para prender a fralda, “enquanto o bebê estiver pequenininho”, depois os alfinetes de segurança, “para quando ele crescer e engordar mais”, dois baldes diferentes, “um para as fraldas de xixi e outro para as de cocô”, duas bacias “para deixar as fraldas corando no sol”, o sabão de coco, “pois o bebê pode ter alergia a sabão em pó”, e por aí ia a lista dela. Ela listava e me ensinava ao mesmo tempo.

Juntas, nós saímos para comprar todos esses “itens invisíveis”. Quando chegamos ao item “mamadeiras”, ela me recomendou uma mamadeira para água e chá, outra maiorzinha para suco e duas grandes para leite. Não precisava mais do que isso. Mas eu lembro que fiquei encantada com a diversidade dos modelos e tamanhos de mamadeiras e quis levar uma bem pequenininha para dar remédio. “Minha filha, você quase não vai usar isso. Você pode dar remédio na mesma mamadeira de água...” Mesmo assim, comprei. Também fiquei doida por uma mamadeira curva, toda anatômica, especial pro bebê não derramar. Ela sorriu e disse: “Não queira essa não, é difícil de lavar, a escova não vai conseguir entrar nessa curva...” Mesmo assim, comprei.

E junto com as mamadeiras, ela comprou também uma escova para lavá-las, uma caixa plástica com tampa pra guardá-las, uma garrafa térmica para água quente, buchas que deveriam ser usadas só para lavar as coisas do neném e, por último, uma panela enorme, redonda, com tampa, toda de tefal, outro luxo naquela época. Dessa vez, fui eu quem perguntei: “Mãe, e pra que essa panela?” Ela me disse: “Pra ferver as mamadeiras. Essa é boa, porque é grande e cabem todas as mamadeiras de uma vez. E depois, quando não precisar mais ferver mamadeira, você usa pra fazer arroz, pois ela é de tefal, não gruda...” Balancei os ombros e aceitei o presente. Quem era eu pra discutir com minha mãe? Ela via além e devia saber o que estava fazendo...

E o tempo foi passando. Usei os dois baldes para as fraldas, a fita crepe, os alfinetes de segurança, e fervi as mamadeiras naquela panela grande e bonita. Só usei a mamadeira de remédio duas vezes na vida, pois descobri que era mais prático dar remédio na de água mesmo... Tive raiva da mamadeira curva todas as vezes em que ia lavá-la, pois a escova não alcançava a curva... Não demorou e eu acabei me livrando dela. Depois que eu não precisei mais ferver mamadeiras, guardei minha panela “pra fazer arroz”, pois éramos só eu, meu marido e um bebê. A panela era muito grande.

Um ano depois, voltamos para Aracaju e conosco, veio também minha panela. Tinha ciúme dela, não queria que ninguém a usasse, para não arranhá-la, pois era uma panela cara e tinha sido presente de minha mãe. Por isso, guardei-a nos recônditos mais escondidos do armário da cozinha...

Tive mais 4 filhos e como já não era mais mãe de primeira viagem, fervi as mamadeiras em outras panelas mesmo, de preferência nas que estivessem mais ao alcance de minha mão...

De vez em quando, durante aquelas faxinas na cozinha, em que a gente entra disposta a jogar meio mundo de coisas fora, eu encontrava minha panela. Agora éramos 7 em casa, aquela panela de arroz daria perfeitamente. Mas eu olhava pra ela e olhava pras minhas outras panelas, coitadas, já cansadas de viver, e aí é que eu não tinha coragem mesmo. Se eu a deixasse ali, no meio das outras, muito em breve ela também ia cair na vida e virar uma panela amassada, sem tefal e imprestável... “Não, deixe ela aqui mesmo”, dizia pra mim mesma. E tornava a escondê-la no armário, por mais alguns anos...

Esta semana, arrumando um armário, enchi os olhos d´água quando encontrei minha panela linda. Hoje ela está com 34 anos, a mesma idade do meu filho, mas continua novinha, já que passou praticamente toda a vida guardada no armário... Hoje somos apenas 4 em casa e ela tornou-se grande pra gente outra vez. Mas em homenagem à minha mãe, hoje resolvi usar a minha panela de saudade...

E sabe o que eu descobri, mãe? Que mais uma vez a senhora tinha razão. Ela é ótima mesmo pra fazer arroz...

 
 
 

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