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O INCÊNDIO

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 2 de set. de 2018
  • 6 min de leitura

Nosso quarto era cercado de janelas e tinha 3 camas: a primeira, perto da porta, era a minha; a do meio, de minha irmã Suzana, e a terceira, de minha irmã Denise. Na parede em frente às camas, ficava uma estante enorme de madeira, que ocupava quase a parede toda. Ali viviam todos os nossos livros, discos, radiola e toda sorte de quinquilharias que a gente costuma colocar ali pra guardar depois, mesmo sabendo que esse "depois" nunca chega... E na parede perto da porta, ficava um imenso armário embutido branco, de 4 portas, uma para cada filha, sendo a primeira usada como roupeiro.

Minha irmã Suzana já não morava conosco há muitos anos, desde que fora fazer o vestibular em Salvador, em 72. Mas a cama dela permaneceu ali, no meio do quarto, para quando ela viesse de férias.

E se tinha uma coisa que eu adorava era a cama de Suzana! Pode-se dizer que aquela cama era o “meu closet"! Em cima dela, eu ia deixando as minhas roupas de casa, as roupas com que eu voltava da rua, as roupas que eu tirava do armário para escolher com qual sair e era nela onde a passadeira colocava as pilhas de roupas passadas, esperando que Deus me desse coragem e disposição para que eu as guardasse no roupeiro...

Mas é claro que o que era "confortável" pra mim, não o era pra Denise, que sempre foi muito arrumada e organizada. Aos sábados, por exemplo, ela acordava com a corda toda e disparava a arrumar a casa inteira. Enquanto isso, eu continuava na minha posição preferida: sentada no chão, com a cabeça nas nuvens, escrevendo cartas em cima da minha cama. Coitada de minha irmã, como deve ter sido difícil pra ela conviver comigo! Mas como trocar a delícia de escrever cartas por uma arrumação de casa? Eu nunca consegui! Aliás, até hoje é difícil pra mim entender o fascínio e a atração que uma faxina exerce em algumas pessoas... Eu, hein!

Pois bem, naquele ano de 1980, uma prima nossa de Salvador havia conseguido um emprego em Aracaju e estava morando conosco. Ela ficou na cama de Suzana e nós separamos um lado do guarda-roupa para ela. Só não consegui espaço na estante, pois pra isso, seriam necessários vários dias de arrumação. E eu estava no último semestre da faculdade, dividindo meu tempo entre a faculdade, as aulas que eu dava e o estágio do último período. Mas Carminha, minha prima, não exigiu nada, muito pelo contrário. Tratou de acomodar tudo o que era dela dentro da parte que lhe cabia do guarda-roupa e foi tocando a vida... Mas eu confesso que me incomodava aquele aperto das coisas dela. Não gostava de ver aquelas dezenas de livros de Agatha Christie e os discos de Charles Aznavour que ela colecionava amontoados no guarda-roupa. Aquilo merecia estar na estante!

Em fins de julho, Carminha viajou de férias pra Salvador e eu me formei. E para comemorar minha vida nova, resolvi fazer uma surpresa pra ela. Tirei todos os meus livros e apostilas que foram da faculdade e, em seu lugar, coloquei os livros e discos de Carminha. Depois, guardei todas as minhas roupas, deixei o quarto impecável e fui passar o fim de semana na casa de minha tia. Carminha estaria de volta na segunda e certamente iria adorar a surpresa!

No domingo à noite, dia 3 de agosto, todos foram jantar na casa de meu avô, como era de costume. Só que antes de sair, Denise resolveu acender uma vela que ficava em cima de um pires, na penúltima prateleira da estante. Ao lado desse pires, ficava uma boneca nossa, bem grande, que usava um vestido rosa comprido e bem bonito. Denise costumava rezar assim, com uma vela acesa, mas ficava sempre por perto. Nessa noite, porém, ela acendeu e se esqueceu de apagar, ao sair.

Nesse tempo, Vera, a nossa empregada, também morava conosco. Ela ajudava a dar o jantar na casa de meu avô, mas voltava mais cedo pra casa. Assim que ela voltou pra casa naquele dia e se dirigiu para o quarto dela, notou umas labaredas enormes tomando conta do nosso quarto. Como estava sem a chave da porta principal da casa, correu apavorada para a casa da vizinha e ligou para o corpo de bombeiros. Em seguida, ligou para a casa de meu avô e avisou a meu pai. Imediatamente, meu pai chamou minha mãe e saiu apressado de lá, junto com meus irmãos. Mas minha mãe, sempre muito calma, disse: “Vá indo, Petrônio, que depois eu vou.” Mas assim que ele saiu, ela caiu em si: “Oh, meu Deus, minha casa tá pegando fogo e eu aqui?” Então, ela chamou um táxi e deu a ordem: - Moço, vamos para a Rua Boquim, pois minha casa tá pegando fogo! Só que o taxista não deve ter entendido o resto da frase e continuou seguindo, sem a menor pressa. De repente, passa por eles um carro de bombeiros bem apressado, com a sirene ligada e o taxista comenta: - Epa, deve ter acontecido algum incêndio por aqui... Ao que minha mãe responde: - É, moço, e o incêndio é na minha casa! De hoje que eu digo pro senhor andar mais rápido...

Contando assim, até parece piada, mas quem conheceu minha mãe, sabe bem o quanto ela era serena e tranquila. E como falava baixinho, ninguém jamais poderia imaginar que aquilo fosse verdade!

Quando finalmente ela chegou, os bombeiros já estavam lá, jogando água no quarto todo. O quarto estava escuro e sufocante de tanta fumaça. Preocupado, meu irmão Paulo ainda pediu ao bombeiro que tivesse cuidado na hora de jogar água, pois ali naquela parede tinha uma estante enorme... O bombeiro sorriu pra ele e, segurando um único pedaço de madeira, perguntou: - Que estante? Não havia sobrado nada. Foi aí que Denise se lembrou da vela. E a explicação pareceu bem simples. O vento havia derrubado a vela que pegou fogo no vestido da boneca e depois no resto da estante. O quarto ficou irreconhecível. Paredes, teto, janelas e a frente do guarda-roupa ficaram completamente pretos, cobertos de fuligem. Das 3 camas, apenas uma sobrou. Uma lâmpada sem lustre pendia do teto, segura apenas por um fio. No lugar da estante, uma montanha de cinzas e discos retorcidos. Parecia uma cena de filme de terror.

E eu só me lembrava de Carminha. Graças à “minha bondade”, ela perdeu, de uma só vez, todos os livros, discos e documentos. Até o diploma dela foi queimado. Em compensação, graças à minha arrumação, todas as minhas roupas se salvaram. E também as do roupeiro. Nessa noite, meu pai reuniu meus irmãos na sala e junto com minha mãe eles se ajoelharam e agradeceram a Deus por terem perdido só um quarto. Podia ter sido muito pior...

No dia seguinte, quando cheguei em casa e vi aquela montanha de lixo na varanda, senti um aperto enorme no coração. Todos os meus livros e discos que eu tinha comprado suadamente, com o meu pobre salário de professora não passavam agora de um monte de lixo. Ainda recolhi alguns que só estavam com a primeira faixa empenada, mas a grande maioria ficou imprestável. Mas aquele monte de escombros também me serviu de inspiração para compor uma paródia. Em vez de “As cantoras do Rádio”, eu e Carminha viramos “As Flageladas do incêndio”. E juntas, cantamos e rimos das nossas desgraças...

Ganhamos um quarto novo, a casa que tinha apenas um mês de pintada teve que ser toda pintada outra vez e quanto à Denise, nunca mais quis saber de velas!

Durante anos, fiquei sem saber, ao certo, o que de fato eu havia perdido no incêndio. Mas a grande maioria foi de valor sentimental. Junto com os discos, foram-se também os nomes de todas as músicas que eu gostava. E sem os nomes, tornou-se impossível procurar por elas. Só muitos anos depois, com o advento da internet, é que fui reencontrando tudo o que eu gostava. Mesmo sem me lembrar dos nomes, meu coração reconhecia a melodia. E naquela melodia, eu reconhecia um pedaço de mim mesma que se havia perdido.

Foi assim que eu aprendi que tudo o que realmente importa não se queima, não desaparece. Porque tudo o que realmente importa a gente não guarda “numa estante”. Guarda dentro da alma, aquele lugar, como dizia Rubem Alves, “onde se encontram os pedaços perdidos de nós mesmos. Eles aparecem por causa da saudade e quando eles aparecem, o nosso corpo se comove, ri e chora…” E é verdade. Foi a saudade que me levou hoje de volta a 1980, ao meu antigo quarto. E fui capaz de vê-lo igualzinho como era antes do incêndio. Somente a saudade é capaz de entrar nos lugares mais improváveis de nossa lembrança e trazer de volta tudo o que faz bem à nossa alma. A mesma vela que ontem escureceu e apagou uma parte de mim hoje ilumina e traz de volta cenas de minha vida que eu jamais gostaria de esquecer...

 
 
 

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