NÃO VENDO
- Lilian Rocha
- 22 de ago. de 2018
- 7 min de leitura
Quando eu era adolescente, um dos meus maiores sonhos era ter uma casa com piscina. Ouvindo isso, parece uma grande besteira, mas casa com piscina em Aracaju, há mais de 40 anos atrás, era uma raridade! Piscina só existia nos clubes. E pra entrar num clube, tinha que ser sócio. E pra ser sócio, era caro pra burro...
Frequentei a piscina da Associação Atlética quando era criança, graças a meu tio Afrânio Bastos que era sócio. Foi ele quem me deu as primeiras aulas de natação. Infelizmente eu nunca levei jeito pra natação nem pra esporte nenhum e, por isso, nunca aprendi a nadar. Nunca consegui coordenar braços, pernas, cabeça, respiração, tudo ao mesmo tempo... Acho muito difícil! Quando eu caprichava nos braços, esquecia de bater as pernas, quando batia as pernas e mexia os braços, esquecia de virar a cabeça e engolia água, enfim, era um desastre! Mas mesmo sem saber nadar, eu me virava assim mesmo, na doida, indo de uma ponta a outra por debaixo d´água, sem técnica nenhuma...
Nesse mesmo tempo, meu pai se tornou sócio do Iate e nós passamos a frequentar a piscina. Ainda me lembro do clube antes da reforma, quando a piscina ficava mais pra dentro. Tenho na cabeça uma cicatriz, lembrança de uma dessas manhãs de sábado em que íamos ao Iate com meu pai. A piscina era dividida em parte rasa e parte funda. Meu irmão mais velho estava na funda e, estirando os braços pra mim, insistiu para que eu pulasse. Fui na onda dele, mas não calculei direito a distância e acabei batendo a cabeça na mureta da piscina. Como saiu muito sangue, meu pai me levou ao SANDU – um posto médico de urgência que ficava na rua Itabaiana, bem frente ao quartel, onde hoje funciona o Colégio Valnir Chagas. Levei 4 pontos e terminei estragando o sábado da família toda...
Depois o clube foi reformado e a piscina veio ocupar o lugar de hoje. Tenho muitas e muitas lembranças daquele pedaço do Iate, a piscina, o barzinho, o salão... Ainda hoje, quando entro naquele salão e olho o barzinho, sou capaz de sentir o cheiro das batatas fritas que Guga, um garçom querido de meu pai, trazia pra gente numa bandejinha inox, com um monte de palitos enfiados... Eram as melhores batatas fritas do mundo!
Outra lembrança marcante que tenho é de uma manhã diferente que passei na casa de Celi Prado, minha colega de primário. Deve ter sido o aniversário dela, pois não havia outra razão para eu ter ido lá. Ela tinha um bocado de irmãos e morava numa casa enorme e muito bonita. Assim que entrei, dei de cara com uma piscina enorme. Me puseram sentada, ao lado de outras crianças, e ali eu fiquei, quietinha, completamente extasiada, olhando todo mundo brincando na piscina. A casa de Celi virou hoje um belo edifício da Av. Beira Mar, batizado com o nome do pai dela: Emmanuel Fonseca. Sempre que passo por lá, eu me lembro daquele dia. Foi a primeira casa com piscina que eu conheci na minha vida!
Quando saí do primário, meus pais me deram duas opções: ou estudar no G.A. (futuro Colégio de Aplicação) onde meus 3 irmãos estudavam, ou estudar no Arqui, com minha prima Márcia. Como corria um boato de que o Arqui ia ter piscina, eu nem pensei duas vezes. Fui pra lá. Estudei 7 anos ali, mas nunca vi nem cor de piscina. Ela só viria a ser construída muitos anos depois...
O tempo foi passando e a cidade crescendo. Os clubes foram perdendo o glamour e cedendo espaço para grandes condomínios fechados, perto da praia, com piscina e área de lazer. Mas meu sonho continuava vivo dentro de mim. Eu queria uma casa com piscina, só que, agora, perto da praia. E quando o sonho é assim, forte, a gente tem que ter paciência, não pode desistir dele, por mais difícil que ele nos pareça...
Foi somente depois de casada e com 3 filhos que o meu sonho começou a tomar forma...
Meu cunhado havia descoberto um condomínio recém-construído, que ficava na praia do Robalo, pouco depois do antigo clube da Telergipe, e como ele sabia que eu estava doida atrás de uma casa de praia, foi logo nos contando a novidade: "Lilian, você vai adorar! É um condomínio novo, de 23 casas, com piscina e pertinho da praia. Tem garagem, um jardinzinho na frente, 3 quartos em cima, embaixo da escada tem um espaço que dá pra fazer um barzinho...”
O entusiasmo dele logo me contagiou e eu tratei de procurar nos classificados se havia alguma casa pra vender ali. Descobrimos que a casa 23 estava à venda e por um preço que a gente podia pagar. Austeclino tinha um terreno na Atalaia e um consórcio de um carro. Vendendo os dois, dava pra comprar a casa sem financiamento! Daí por diante, não dei mais sossego a Austeclino, até que ele ligou para o corretor e nós fomos lá conhecer. Eram pouco mais de 4 horas da tarde, quando enfim chegamos ao “Condomínio Horizontal Praia do Refúgio”. Era um conjunto de 23 casas de andar, todas iguaizinhas, sendo 13 de frente para o mar e 10 viradas para o outro lado. Na parte de dentro, entre os dois conjuntos de casas, ficavam as garagens, uma em frente a outra, e a entrada da área de serviço.
A casa 23 era a primeira do bloco de trás. Mal comecei a correr a casa e já fiquei entusiasmada. Foi quando o corretor disse que a casa 1 também estava à venda e perguntou se a gente queria olhar. Por que não? Já estávamos ali mesmo... Quando subi até o quarto de casal e vi o mar pela janela, não tive mais dúvidas: “Eu quero esta casa!”
Acontece que, por ser de frente, o preço daquela casa era maior. E a gente não tinha como pagar, só se financiasse. Mas como a gente explica ao nosso coração que os sonhos têm preço e que nem todos a gente pode pagar? Como dizer à nossa alma que aquilo pelo qual ela tinha sonhado a vida toda e que finalmente encontrara não podia ser dela? Eu não consegui. Estava completamente apaixonada por aquela casa.
E que marido teria coragem de dizer “não” ao sonho da vida toda de sua mulher? Ele também não conseguiu. E por isso, além de vender o terreno e o consórcio, teve também que entrar num longo financiamento de 15 anos, para conseguir comprar aquela casa... Voltei pra casa me sentindo a mulher mais feliz do mundo!
O próximo passo agora era ir pra lá, passar o primeiro fim de semana juntos, em “nossa casa de praia”. Só que a casa estava vazia, era preciso equipá-la, pelo menos com o básico. Mas a gente não tinha mais dinheiro, tinha empatado todas as nossas economias na compra da casa. Só que depois que a gente mostra ao universo o tamanho do nosso sonho e tudo o que foi capaz de fazer para transformá-lo em realidade, é claro que o universo se rende e acaba conspirando ao nosso favor...
Foi exatamente isso o que aconteceu. Todas as pessoas da nossa família resolveram nos ajudar a montar a casa.
Minha mãe comprou uma geladeira nova e me deu a antiga; minha cunhada trocou as camas das filhas e nos deu as antigas; de meu avô que tinha morrido, herdei um guarda-roupa e uma cama de solteiro, e de minha sogra, ganhei um quarto de casal completo, de mais de 100 anos, que havia sido dela e estava há muitos anos trancado e esquecido, dentro de uma casa velha e empoeirada em Salgado.
E assim, em apenas uma semana, nós montamos a casa, com pequenos pedaços da generosidade de cada um...
No dia 23 de março de 1989, numa quinta-feira santa, dormimos pela primeira vez em nossa casa de praia. Nós e nossos 3 filhos, um de 4, uma de 3 e uma de 1 ano e 3 meses. Eu estava com o corpo todo moído, extremamente cansada pois tinha lavado a casa toda, mas lembro que olhei pra Austeclino e disse: “Eu tô cansada, mas eu tô feliz!” Aquele foi o primeiro de milhares de fins de semana felizes que passaríamos ali.

Nossa casa virou o ponto de encontro de toda a família. Vivia sempre cheia, principalmente de crianças. Praticamente todos os meus 12 sobrinhos cresceram ali, junto com meus 5 filhos, feito primos-irmãos.


Com o tempo, todas as casas do condomínio foram compradas. Até minha sogra se entusiasmou e comprou uma também, a casa 16. Sabíamos o nome de todos os condôminos e vivíamos como uma grande família, cuidando uns dos outros, festejando aniversários, carnaval, Semana Santa, São João, Natal, Réveillon e inventando comemorações para as outras datas sem valor...
Quando nossos filhos cresceram, os fins de semana juntos em nossa casa de praia foram ficando cada vez mais raros. Nossa casa foi se tornando um estorvo, ninguém queria ir pra lá. Meu marido perdeu o interesse por ela e começou a alimentar a ideia de vendê-la. Mas eu nem podia ouvir falar disso...
No mês passado, porém, resolvi abrir mão dela. Disse a Austeclino que ele tinha razão, era mais sensato vendê-la, já que não estávamos mais usufruindo dela. Seria uma despesa a menos. Prontamente, ele mandou fazer uma faixa de "Vendo" e dois dias depois, todo feliz, veio me mostrar a foto da casa com a faixa presa na grade da frente. Quando vi aquela foto, meu coração se apertou, entristecido. Como explicar ao meu coração que aquilo fora apenas um mal entendido, que não era aquilo que eu realmente desejava? Eu não consegui. Estava completamente envergonhada... E quando a gente faz algo do qual nosso coração se envergonha, é preciso ter a coragem de assumir o erro e dar provas de que nossa vida é muito melhor quando nos deixamos conduzir por ele...
E foi isso que eu fiz. Domingo passado, chamei meu marido, meus filhos e sobrinhos e passamos o dia lá, como tantas vezes fizemos. E ali, em frente à piscina, relembrei toda a história daquela casa, todo o esforço que fizemos para comprá-la e os quinze longos e penosos anos que passamos para quitá-la... Revi meus filhos ainda crianças correndo, revi o barzinho que montei ali, revi as festas que fizemos e ouvi, enternecida, as lembranças que cada um deles guardava daquela casa.
Percebi, então, que aquela casa não era só “uma casa”. Era o nosso refúgio, a melhor parte de nós mesmos que ficara ali preservada, indiferente ao tempo... Num ímpeto, deixei meu coração falar por mim e arranquei a faixa. Porque não se pode vender uma parte de nós mesmos...

Percebi, então, que aquela casa não era só “uma casa”. Era o nosso refúgio, a melhor parte de nós mesmos que ficara ali preservada, indiferente ao tempo... Num ímpeto, deixei meu coração falar por mim e arranquei a faixa. Porque não se pode vender uma parte de nós mesmos...
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