41 ANOS DEPOIS
- Lilian Rocha
- 22 de jul. de 2018
- 3 min de leitura
Em 1977, aos 19 anos, fui professora dele. Ele tinha 10 e estava no 3º ano primário. Sentava-se na frente e era daqueles alunos bem aplicados, educados, calados, que não davam trabalho nenhum aos professores. No primário, a gente ensina todas as matérias, mas como sempre gostei mais de português, fui prestando atenção cada vez mais nele, especialmente na hora de corrigir aquelas pilhas e pilhas de cadernos, tão comuns naquele tempo.
Quem foi professora primária sabe que esta é uma das tarefas mais difíceis e cansativas. Os deveres eram todos escritos à mão e a gente tinha que corrigir, não só as respostas, mas todos os enunciados, para termos a certeza de que eles tinham copiado certo.
Havia cadernos de todas as categorias, desde os limpos e bem forrados, como também os desencapados, os de bordas arrebitadas, os borrados e os de letra tão feia que chegavam a dar um desânimo na gente! E era exatamente "pelos cadernos", que a gente ia conhecendo os alunos... Na hora de corrigir, eu tinha uma técnica: colocava em cima os cadernos "mais fáceis", cuja letra fazia com que a leitura fluísse sem problema e ia empurrando pra baixo os deveres de letras garranchadas que davam um trabalho tremendo, pois requeriam de nós, professores, às vezes 3 ou 4 leituras... No final daquele suplício, colocávamos um recadinho para o aluno "Melhore a letra!", que devia soar antipático para o aluno, mas pra gente era quase uma súplica!
Julinho ficava na categoria de alunos "dos cadernos de cima da pilha". Tinha uma letra caprichada e escrevia tão bem que quase não tinha o que corrigir. E cada vez que eu corrigia os cadernos dele, mais crescia minha admiração por ele. Ele era um excelente aluno, não só em todas as matérias, como também no comportamento. Passei só um ano ensinando naquela escola e, por isso, acabei perdendo o contato com quase todos aqueles alunos. Mas daquela filinha da frente, cujos cadernos estavam sempre no topo da pilha, eu gravei pra sempre os nomes: Norma, Lana, Liomar, Luísa e Julinho. Mas esqueci de gravar os seus sobrenomes. E sem sobrenomes, perdi de vista todos eles.
Muitos e muitos anos depois, fui reconhecida por um daqueles saudosos alunos: Luiza Félix, agora já casada e mãe: "Você foi minha professora no Instituto Sagrado Coração de Jesus!" Fiquei radiante de felicidade e imediatamente pedi notícias dos alunos de que eu ainda me lembrava e contei-lhe da minha admiração por Julinho, da vontade que eu tinha de reencontrá-lo, só pra lhe dizer isso. "Julinho é Julio Rego, professora. Ele é músico, toca gaita e de vez em quando se apresenta." Júlio Rego. Agora eu tinha uma pista.
Mas ainda tive que esperar alguns anos até o surgimento do facebook, para conseguir entrar em contato com ele. Só que o "meu menino" de 10 anos agora era um homem de 51. O que dizer a um homem de 51, quando tudo o que você sabe sobre ele é apenas... cadernos?
Mas foi isso o que fiz. Falei sobre a letra e os cadernos dele. E da minha grande vontade de reencontrá-lo. No fim, pedi-lhe que quando ele fizesse alguma apresentação, não se esquecesse de me convidar. Naturalmente ele deve ter me achado uma maluca... Mas me respondeu com a mesma gentileza discreta de sempre.
Esta semana recebi um convite dele pelo facebook sobre um evento que teria, falando sobre gaita. Era o destino me acenando, sorridente. Resolvi ir, mesmo sem entender nada de gaita, só de cadernos... Não havia mais lugar. De súbito, uma senhora, muito gentilmente, me apontou uma cadeira vazia, junto à sua mesa. Resolvi aceitar. E mergulhei de cabeça no som maravilhoso que saía das 4 gaitas em discussão ali presentes. Em dado momento, ouvi a senhora comentar com alguém: "Julinho não toca só não, ele estuda, estuda muito!" Aquilo só podia ser coisa de mãe. Mãe vê além, seus olhos alcançam o que mais ninguém é capaz. Quando perguntei o que ela era dele, ela confirmou: Sou mãe dele. Imediatamente contei-lhe quem eu era e o que estava fazendo ali. Eu também tinha ido ver e aplaudir o "nosso filho".
Foram 41 anos de espera. O menino de letra bonita, estudioso e aplicado de ontem hoje é um exímio músico e profundo estudioso da gaita. E um orgulho para todos os seus professores. Não podia ser diferente. Valeu a pena a espera, Julinho, valeu a pena o abraço. 41 anos depois e eu continuo orgulhosa de você! Obrigada por essa noite maravilhosa! Parabéns! <3

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