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‘PRESENTE FEITO’

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 16 de nov. de 2017
  • 5 min de leitura

A ideia começou por causa da minha prima Rosinha, companheira inseparável da minha infância e adolescência. Dona de uma criatividade sem tamanho, Rosinha sempre foi o meu ídolo. Da cabeça dela nasciam as brincadeiras mais incríveis. Era a quarta dos seis filhos de minha tia Cici e morava em Salvador, num apartamento que ficava numa rua de nome curioso, chamada “Jogo do Carneiro”, em Nazaré. Quando o carro de meu pai entrava naquela rua estreitinha e muito difícil de manobrar, meu coração disparava, pois eu sabia que naquele exato momento estavam começando pra mim, as melhores férias da minha vida.

O apartamento era grande, mas não para a quantidade de gente que morava ali. Não bastassem os 6 filhos e uma tia-avó, minha tia também costumava receber muitas visitas que normalmente ficavam para o almoço e para o jantar, de modo que a casa dela era permanentemente cheia e o espaço para nós, crianças, era quase nenhum. Havia um espaço, entre a cozinha e os outros quartos, que tia Cici logo aproveitou para transformar em mais um quarto. Colocou duas camas e acomodou os três filhos menores. Por alguns anos, dois filhos dividiram a mesma cama. Mas nunca reclamaram nem nunca morreram por causa disso, muito pelo contrário, são muito unidos. Só depois que a filha mais velha se casou, foi que o mais novo teve direito a uma cama só para ele. Era exatamente nesse ‘quarto de passagem’, sem porta, só com duas camas e um armário embutido, que a gente passava a maior parte do nosso tempo brincando, indiferente ao barulho da máquina de lavar, que trabalhava incessantemente, bem ali do nosso lado, na entrada da cozinha.

Nossa brincadeira preferida, inventada, naturalmente, por Rosinha, era ‘de cidade’, que consistia, justamente, em transformar aquele minúsculo quarto numa cidade. Entre uma cama e outra, portanto, ficava o ‘correio’; entre a cama e o armário, era o ‘banco’ e finalmente, em frente ao armário, era o ‘supermercado’. A cada um de nós cabia a responsabilidade da montagem e do funcionamento desses ‘estabelecimentos’, ou seja, para o banco funcionar, era preciso fazer notas de dinheiro, talões de cheque e tudo o mais que fosse necessário num banco. Tudo de papel. Minha prima era tão caprichosa que depois de fabricar os pequeninos talões de cheque, ela pegava um alfinete e perfurava cuidadosamente cada página do talão, de modo que quando fôssemos destacar o cheque do seu respectivo canhoto, pudéssemos ouvir aquele barulhinho característico... A mim, cabia o correio e, portanto, a confecção de papéis de carta, envelopes, selos e telegramas. Minha outra prima era dona do supermercado que por sua vez era montado com os objetos que ela recolhia lá mesmo no apartamento, especialmente da cozinha e do banheiro. Por isso, não era raro quando nossa brincadeira era subitamente interrompida pelo grito de um irmão mais velho: “Cadê o shampoo do banheiro que não está mais aqui?”

Só meu primo mais novo é que não tinha um estabelecimento fixo. Primeiro, por falta de espaço; segundo, porque ele só tinha 6 anos. Mas ele não se apertava. Colocava uma cadeira atrás da outra e dizia que era o motorista do ônibus que nos levaria a todos os pontos da cidade. Ele representava tão bem que o ônibus dele tinha até barulho de freio e o som característico da porta se abrindo... Meu primo também era dono do ‘lambe-lambe’, aquelas fotos 3x4, de revelação instantânea, que naquele tempo eram tão comuns nas grandes praças. Íamos no ônibus dele e assim que chegávamos ‘à praça’ (o final da segunda cama), ele deixava de ser o motorista e se transformava no fotógrafo. Ele nos sentava numa cadeira, ajeitava nosso rosto para a pose, tirava a foto numa máquina também feita de papel, e depois se escondia debaixo da cama para ‘revelar’. Cerca de três minutos e lá estava nossa foto, desenhada por ele mesmo... E assim passávamos os dias inteiros das nossas férias. Brincando com a nossa imaginação... Além dessa deliciosa brincadeira, Rosinha também inventava peças de teatro e coreografias. Sob a sua liderança, passávamos horas e horas ensaiando, para depois nos apresentarmos às visitas que chegassem, com figurinos também criados por ela. Por essas e outras coisas, ela sempre foi meu ídolo. Queria ser como ela.

Rosinha se casou e teve, nada mais nada menos, que 7 filhos. Aquilo foi o máximo pra mim! Só tive 5, nunca consegui me igualar a ela nem mesmo nisso... Teve a sorte de se casar com um homem tão habilidoso quanto ela. E esse ‘gen’ de habilidade manual foi generosamente distribuído entre todos os filhos. Todos sabem fazer tudo: pintam, cozinham, constroem, costuram, consertam, além de serem extremamente inteligentes e aplicados nos estudos. Mas como toda pessoa que tem 7 filhos, a vida dela também nunca foi um mar de rosas, pois não é fácil manter uma família tão numerosa. Para isso, é preciso também, usar a imaginação... especialmente no Natal! Por isso, ela também estabeleceu, dentro de sua própria casa, o ‘amigo secreto’. Assim, cada um só precisaria dar um presente. Mas como tudo o que vem de Rosinha sempre foi diferente, não é de se estranhar que ela também inventasse um amigo secreto diferente. Em vez de presente comprado, ela instituiu o... ‘presente feito’! Ou seja, cada um teria que confeccionar um presente, usando suas próprias habilidades e o material que tivesse em casa. Assim, ninguém ficaria em desvantagem por ter ganhado um presente mais barato que o outro.

Quando ela me contou isso, fiquei com água na boca. Já tinha ensinado meus filhos a brincarem de cidade, quando eram crianças, e agora também ia instituir em minha casa o “Natal do presente feito”. E assim fiz. Reuni minha família e disse que naquele Natal cada um se encarregaria de fazer o presente que daria para o outro. E ante os olhares atônitos deles, sorteei o ‘amigo secreto’, distribuí papel, cartolina, cola e disse, simplesmente, que eles usassem a imaginação... Foi aí que me dei conta de um pequeno detalhe: meus filhos estão longe de ter as mesmas habilidades que os filhos de Rosinha. Com exceção de Júlia, todos são bastante desajeitados e muito desastrados... Por isso, o que se viu ali foi algo surreal! Depois de passar o dia inteiro trancado no quarto, Felipe saiu de lá segurando pra Letícia algo que ‘deveria ser’ uma caixa de jóias, toda feita de papelão, mas que de tão torta e malfeita não servia pra nada; Letícia, por sua vez, deu pra Gustavo um bolo todo feio e despedaçado, que ele não teve nem coragem de comer; Gustavo tentou fazer um porta-lápis de papel para o pai, que infelizmente não se segurava de pé... Mas rimos tanto com o resultado das nossas geringonças que aquele Natal foi um dos mais inesquecíveis pra gente...

De tudo isso me lembrei ontem, enquanto fazia uma faxina. Dentro de uma das gavetas de meu marido, encontrei um pequeno baralho, feito a mão. Sabendo da grande paixão dele por paciência, Gustavo teve a ideia de fazer pra ele um baralho, enfeitando cada carta com fotos de cada um da família. Mas para caber no espaço, ele esticou tanto as fotos que acabaram ficando disformes... Lembrei, então, dos nossos natais de presente feito, do trabalho que dava a confecção daqueles presentes e dos risos que dávamos com a nossa própria falta de habilidade...

Há coisas que fazemos, aparentemente simples, que ganham depois um significado enorme. Como por exemplo, o tempo que perdi naquele pequeno quarto de passagem, aprendendo com minha prima que a melhor brincadeira é estarmos todos juntos... Ou o tempo que perdi com os meus filhos, ensinando pra eles que o melhor presente é o tempo que perdemos com o outro... Assim eu quero o meu Natal este ano. Feito de lembranças e de saudade... (Lilian Rocha - 23.12.13)


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