A FUGA
- Lilian Rocha
- 16 de nov. de 2017
- 5 min de leitura
“Marcelo Zona Sul”. Foi esse o filme que invadiu as telas de todos os cinemas em princípios da década de 70. Estrelado pelo ator Stephan Nercessian, com apenas 16 anos, o filme contava a história de um garoto às voltas com sua primeira paixão. No final, ao se saber trocado por outro, Marcelo arruma a mochila e, num ímpeto, decide fugir de casa e ir para São Paulo, de carona, com mais um colega de escola. Só que nenhum dos carros da estrada lhe oferece ajuda e, por essa razão, os dois desistem da fuga e voltam para casa. Filme bobo, que jamais poderia merecer uma atenção maior de ninguém. Mas ninguém entende o que se passa pela cabeça de uma menina de 13 anos, sobretudo quando essa menina vive, literalmente, nas nuvens... Mal o filme acabara e eu já me declarava completamente apaixonada pelo personagem de Sthepan Nercessian, o tal do “Marcelo”. E por isso, fui ver o filme mais uma vez e mais outra. E depois disso, não havia outro assunto pra mim que não fosse Marcelo Zona Sul. Uma tarde, num dos intervalos da aula, eu e mais duas amigas estávamos conversando, quando outra se aproximou da gente. Estava chateada, pois havia brigado com a mãe e falava sem parar sobre isso. Foi quando alguém sugeriu: “Vamos fugir de casa?” Imediatamente eu me lembrei do meu Marcelo Zona Sul e topei. E essa ideia louca, sem pé nem cabeça, foi começando a tomar forma dentro da gente. Passamos, então, a planejar nossa fuga, cuidando de todos os detalhes possíveis. Éramos 4 meninas, de 13 anos e, conseqüentemente, sem nada na cabeça! Recolheríamos de casa aquilo que nos fosse possível carregar e iríamos pra estrada pedir carona rumo ao desconhecido... O detalhe é que eu não havia brigado com ninguém da minha casa e não tinha motivo nenhum para fugir de casa. Bom, mas isso era só um detalhe... Uma das minhas amigas ficou encarregada de pegar um cobertor grande de casa, outra conseguiria uma faca e a outra ficaria responsável por arranjar uma barraca de camping. Quanto a mim, nem se preocupassem! Minha irmã tinha sido bandeirante e havia um cantil lá em casa dando sopa! Afinal, quem já viu alguém fugir de casa sem levar um cantil? Depois de acertados os detalhes, combinamos de deixar todas essas coisas na minha casa, num quartinho que havia nos fundos. No dia seguinte, bem cedo, levaríamos tudo para o Arqui e deixaríamos escondido no meio do matagal que havia no colégio, onde hoje se situa a piscina. E à tarde, sairíamos normalmente de casa, de farda, fazendo de conta que estávamos indo para a aula. Nada podia dar errado... À noite, depois do jantar, fiquei esperando minha mãe e minha irmã Denise saírem da cozinha para eu pegar o cantil. Mas não sei por que diabo o assunto entre elas parecia render cada vez mais. Como não podia esperar mais, resolvi arriscar: subi num banco e logo alcancei o armário. O cantil estava bem na frente e, do lado, algumas latas de salsichas. Como adoro salsichas, achei por bem levar uma, pois podíamos sentir fome... Desci do banco certa de que ninguém tinha visto nada e corri até o quartinho para esconder essas coisas. Não demorou e logo minhas amigas foram chegando, cada uma trazendo o combinado. Foi aí que minha outra irmã, Suzana, entrou no quartinho e nos surpreendeu planejando os últimos detalhes da fuga. Minha mãe havia me visto pegar o cantil e, assustada, pediu-lhe que conversasse comigo pra ver do que se tratava. Calmamente, ela se sentou do nosso lado e teve uma longa e inesquecível conversa com a gente. Pediu-nos que lhe explicássemos os motivos da fuga, alertou-nos contra o que poderia nos acontecer na estrada, lembrou-nos de como nossos pais ficariam ao receber uma notícia daquelas e, finalmente, fez-nos prometer que iríamos desistir daquela aventura maluca. Ao cabo daquela conversa, estávamos todas chorando, inclusive minha irmã. E cada uma foi embora, consciente de que aquela ideia não tinha a menor razão de ser. No dia seguinte, fui à escola com o coração ainda apertado. Não podia deixar de imaginar que àquela hora estaríamos longe, nem me cansava de agradecer por tudo ter dado errado... Mal a primeira aula terminou e o Pe. Carvalho nos chamou ao gabinete para uma longa conversa. Fez-nos repetir cada detalhe da fuga e quando eu disse que tudo deu errado por causa de uma lata de salsichas, ele riu e disse apenas: “Bendita salsicha, hein?” Às 3 da tarde, tivemos um horário vago e eu fiquei na sala conversando. A essa altura, todo o colégio já ficara sabendo da nossa fuga fracassada e só se falava nisso. De repente, alguém entrou na sala gritando: “As meninas fugiram.” Foi um alvoroço. Corri para o campo e não encontrei ninguém. Nessa época, o muro do colégio era baixinho, especialmente o muro lá do campo. E para completar, ainda havia um buraco no muro, o que facilitava a fuga de qualquer aluno que quisesse gazear uma aula. Lembrei que era por ali que havíamos combinado fugir e senti um frio na espinha. As meninas tinham prometido a minha irmã que iam desistir daquilo e no entanto, não estavam mais ali. E de repente, o colégio todo parou. As aulas foram suspensas. Os professores foram designados a ir procurar as meninas e montar guarda no posto fiscal da saída da cidade. Nossos pais foram chamados ao colégio. Por toda parte, só se via gente agitada, correndo pra lá e pra cá e pais chorando, desesperados, atrás de notícias que não vinham. Às 5 da tarde, vimos as três meninas entrando no colégio, com a cara mais inocente do mundo. Não entendiam o porquê daquele alvoroço, pois elas tinham ido apenas devolver a barraca... Depois desse dia, ficamos “cativas”. Não podíamos mais ir ao colégio sozinhas. Até eu, que morava a 250m do colégio, ia de carro com meu pai. E mais que depressa, o padre tratou de consertar o buraco do muro do campo e suspender o muro do colégio. Segundo ele, “em nossa homenagem...”. Com exceção de uma delas que é minha prima, vejo muito pouco minhas outras duas companheiras de aventura. Mas sei que temos um laço, uma história em comum. Uma história que decidimos esquecer e não contar a ninguém, pelo tanto que saímos machucadas. Mas hoje, 42 anos depois, ao ligar a TV, fui surpreendida com esse filme. Reconheci o “meu Marcelo”, relembrei seu jeito de menino e do quanto esse filme mexeu com a minha cabeça. E uma a uma, as lembranças foram aparecendo, ansiosas para serem contadas. No entanto, não quero me vangloriar pela fuga. Quero apenas deixar retratada aqui a inocência de quatro garotas que sonharam em conquistar o mundo com apenas um cobertor, uma faca, um cantil de um palmo de altura e uma lata de salsichas. Uma bendita lata de salsichas... (Lilian Rocha - 10.11.2013)





















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