A PRIMEIRA VEZ
- Lilian Rocha
- 16 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
- Mãe, posso raspar as pernas? – perguntei pelo telefone. Breve silêncio do outro lado e em seguida, a confirmação. Feliz da vida, entrei no banheiro, pronta para o momento histórico. Afinal, todas as minhas colegas já tinham raspado as pernas, só faltava eu. Era a minha primeira vez. Abri o pequeno armário do banheiro, pregado na parede, e tirei o aparelho de barbear. Desenrosquei a haste prateada, abri a parte de cima, encaixei a lâmina preta, cuidadosamente, e tornei a enroscar a haste. Em seguida, entrei no box, ensaboei uma das pernas e passei o aparelho, de baixo para cima, como haviam me ensinado. Tirei o excesso de sabão e passei a mão. A sensação foi a melhor possível! A pele parecia mais suave do que nunca e muito, muito lisinha. Ensaboei de novo e tornei a passar a lâmina. De repente, a espuma branca que cobria a minha perna foi ficando vermelha, enquanto uma dor bem fina me percorria o corpo. E agora? Tinha cortado a perna. E quanto mais eu jogava água para estancar o sangue que jorrava sem parar, mais ardia o minúsculo ferimento. Juro que não sabia que a vaidade feminina era uma coisa tão dolorosa..! Mas como aquele ansioso momento não podia acabar daquele jeito tão covarde, engoli a dor em seco e continuei a tarefa. Ao fim de uma hora e meia e sete cortes nas pernas, olhei o resultado, satisfeita. Agora sim, eu era uma mulher feita!
Era o dia 31 de dezembro de 1970 e dali a alguns instantes eu estaria, pela primeira vez, no cinema com ‘ele’. A ideia do cinema partira do namorado de minha prima, que era muito amigo dele e resolvera dar uma forcinha àquela história, feita só de olhares e suspiros platônicos... Lembrei de todos os jogos do Bahia que fui ver no Batistão, só porque ele também ia estar lá. Nunca soube de que se tratava aquele campeonato nem por que cargas d´água o Bahia veio jogar aqui, mas o fato é que eu não perdia um só jogo! E enquanto a torcida gritava desesperadamente, acompanhando, atenta, cada grande jogada, meus olhos buscavam, pacientemente, aquele pontinho microscópico, perdido em algum lugar da arquibancada. Estivesse ele onde estivesse, eu terminava descobrindo e documentando no meu diário: ‘Hoje ele estava lindo de camisa vermelha...”
Mas bonito mesmo foi no dia 28 de outubro, dia em que fui ‘apresentada’ a ele. Estávamos de horário vago, no pátio do colégio, quando de repente, eu vi minha colega vindo em minha direção, trazendo ele pelo braço. Meu coração disparou. Ela não era doida de fazer aquilo comigo! Mas ela foi, sim. Ele apertou a minha mão gelada, me disse o nome dele e, em seguida, tirou do bolso da farda um bolo de figurinhas repetidas do álbum ‘História Natural’, que todo mundo colecionava nessa época, e me deu a de nº 118. Meu Deus, a figurinha mais difícil do álbum! Haveria uma prova de amor maior do que aquela?
E agora lá estava eu, me aprontando para ir ao cinema com ele, o menino mais lindo do colégio e dono das figurinhas mais difíceis do álbum! Meu coração batia forte só de pensar! Só de pensar, mesmo, porque na verdade, eu nem sabia direito o que ia acontecer... E se ele me pedisse pra namorar? O que eu ia responder? E o que se responde numa hora dessas? Ai, meu Deus, por que ninguém ensina isso pra gente? Quando chegamos à Praça Fausto Cardoso, local combinado para o encontro, os dois amigos já estavam lá, sentados num banco. Atravessamos a praça e entramos no Cine Pálace. Estava escuro, pois o filme, “O Fantasma de Barba Negra”, já tinha começado. Em silêncio, fomos abrindo espaço em meio a uma fila de cadeiras. Minha prima sentou-se ao lado do namorado e depois dela, ele. Quando passei por ele, para me sentar perto de minha outra prima, ele puxou meu braço e disse: “Você fica aqui”.
E do jeito que eu me sentei, fiquei. Dura, estatelada, de olhos fixos na tela, mas sem entender nada. O filme era censura livre e a julgar pelas risadas, devia ser uma comédia bem divertida. Mas aquilo pra mim não era uma comédia. Eu estava dentro de outro filme, muito mais sério, e com muito medo do que podia acontecer, pois aceitar ir ao cinema com alguém era a mesma coisa que dizer: “Sim, eu aceito ser sua namorada”. Mas será que ‘você fica aqui’ era o mesmo que ‘você quer namorar comigo?” Não, não me lembrava de nenhum caso parecido. “Mas e se for, o que é que eu faço?”
De súbito, senti a mão dele puxar a minha e segurar entre as dele. Gelei. Agora sim, eu não tinha mais dúvidas. Estava namorando de verdade. Ele apoiou o cotovelo no braço da cadeira e conservou meus dedos entrelaçados aos dele. Tudo muito romântico, se não fosse pelo tamanho do braço dele, que por ser muito maior que o meu, impedia que o meu cotovelo também descansasse sobre o braço da cadeira. Mas quem era doida de dizer alguma coisa? Passei o resto do filme assim. Com o olho grudado na tela, o braço pendurado, os dedos imóveis, mas a alma em festa...
Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece. Também eu nunca me esqueci. Nem daquela tarde, nem do cinema, nem das cãimbras românticas que aquele filme me causou...
(Lilian Rocha - 18/11/2012)

Comentarios