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A SUSPENSÃO

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 6 min de leitura

O ano era 1971 e a turma, uma endiabrada 7ª série, chamada hoje de 8º ano. Tão endiabrada que o padre Carvalho, diretor do colégio, tinha dado sua cartada final: “O aluno que for posto para fora da sala levará uma semana de suspensão”. Pode até parecer uma medida exagerada, mas não havia meios de conter a agitação daquela sala. Só de professor de matemática, havíamos colocado três pra correr. Ninguém aguentava aquela sala, ninguém mais tinha paciência com a gente. Lembro de um professor de Desenho que tivemos, que assim que chegou na sala, foi logo se apresentando: “Meu nome é...Jefferson! Leciono...Desenho!” A entonação que ele dava depois das reticências era curiosamente engraçada e foi o bastante para ele logo virar alvo de nossas brincadeiras. Sempre que íamos iniciar uma conversa, começávamos assim: “Meu nome é...” E caíamos todos na risada... Certa vez, numa de suas aulas, a caneta de uma menina que estava sentada perto da porta estourou, sujando toda a carteira. Mostrando as mãos sujas para o professor, pediu-lhe para ir ao banheiro lavá-las. O professor, prontamente, assentiu e voltou-se para o quadro, a fim de continuar explicando o assunto. Nesse momento, o aluno que estava sentado atrás da menina que tinha saído teve uma daquelas ideias luminosas: sujou as mãos com a tinta que ainda estava na carteira e com a cara mais cínica do mundo, mostrou-as ao professor que, inocentemente, consentiu que ele fosse lavá-las. Mas na hora de sair, ele deu uma piscadinha pra gente. Daí pra frente, a brincadeira continuou. Assim que o professor se voltava para o quadro, outro sujava as mãos na carteira e pedia pra sair. O professor, novato, querendo parecer simpático, concordava. E enquanto a sala se esvaziava de alunos, o banheiro ficava superlotado de adolescentes que riam sem parar. Não sei como terminou aquela aula de desenho, pois também eu fui 'vítima' da caneta estourada, mas sei que o pobrezinho do Jefferson foi chamado à direção e caiu fora no mês seguinte. A diversão da gente nesse tempo era apenas essa: tirar a paciência dos professores e principalmente, de Manoel Santana, naquele tempo a segunda pessoa do diretor e que, na sua ausência, tinha plenos poderes de decisão. E a coisa mais fácil do mundo era tirar a paciência de Manoel. Gostávamos de vê-lo correndo pra lá e pra cá, com o rosto todo vermelho, atrás dos alunos mais trabalhosos.

Certa vez, eu e Virgínia Montalvão, minha fiel companheira de aventuras, descobrimos a escada que dava acesso ao sino da igreja. Isso foi o suficiente para infernizar a vida, já sem paz, do pobre Manoel. No intervalo das aulas, nós subíamos a escadinha, velha e escura, e numa fração de segundos, lá estávamos, às gargalhadas, balançando a corda, fazendo soar aquele sino enorme. Depois descíamos as escadas correndo e dávamos de cara com Manoel, que já vinha subindo apressado, olhando feio pra gente. Mas o coração de Manoel era inversamente proporcional à sua pequena estatura. No dia seguinte, ele já estava sorrindo outra vez, esquecido do que havíamos lhe feito no dia anterior. E no outro dia, lá estávamos arrumando novas confusões, atormentando a vida dos nossos professores. E eles, por sua vez, não tendo outra alternativa, acabavam fazendo o nosso jogo, nos colocando para fora da sala...

Foi aí que veio o regime da ditadura: “Uma semana de suspensão para quem for expulso da sala”. A sala respirou fundo e prometeu dar uma trégua. Inclusive eu. Estávamos agora numa aula de inglês. Mas a professora não se chamava Jefferson. Era conhecida e temida por todos nós, principalmente pelo seu jeito irônico. E ai daqueles que ousassem desafiá-la! A aula transcorria no mais absoluto silêncio, só quebrado pela voz dela, chamando um aluno de cada vez para responder ao exercício no quadro. Cada vez que ela abria a caderneta, prendíamos a respiração, torcendo para que o nome chamado não fosse o nosso. Mas como nunca consegui domar meus pensamentos, vez por outra eu me surpreendia pensando em outra coisa, como por exemplo, nos minutos que faltavam para aquela aula terminar, no speed-ball que parecia me chamar lá fora, no picolé da cantina, na novela que a cada dia se tornava mais emocionante...

Naquele tempo, ainda não havia novela de televisão. O auge da moda eram as radionovelas, verdadeiras delícias. Eu acompanhava todas. Só pela manhã tinham três. Mas a melhor de todas era uma que passava na Rádio Jornal, às 10:40 da manhã, exatamente na horinha em que eu começava a me aprontar para ir ao colégio. E enquanto tomava banho, ia me deixando envolver inteiramente pelo clima daquela história, recheada de amor e suspense. E à tarde, no colégio, a novela também se transformava num dos assuntos principais. Até hoje não entendo por que eu fui me lembrar da minha novela logo ali, naquela famigerada aula de inglês! E lembrando da novela, lembrei também que tinha perdido o capítulo daquela manhã. Daí pra frente, o pensamento se soltou da minha cabeça e eu não consegui mais segurá-lo. Afinal, saber o que tinha acontecido com os meus personagens era muitíssimo mais importante pra mim do que saber como se conjugava o past tense do verbo to be... Pensando nisso, recostei meu corpo para trás na carteira e, com o canto da boca, chamei Alda Corumba, uma colega que se sentava atrás de mim. Imediatamente, ela fez o contrário. Aproximou mais o corpo da minha carteira e perguntou o que eu queria. “Me conte como foi a novela hoje.” – disse-lhe eu. Alda, então, começou a me contar, bem baixinho, enquanto eu continuava olhando firme para o quadro, para que a professora não percebesse.

Quando somos alunos, nos achamos completamente invencíveis por detrás das nossas carteiras. Mas basta que nos coloquemos, mesmo que por alguns instantes, na posição do professor, e eis que toda a nossa vulnerabilidade vem à tona. Só depois que me tornei professora, descobri isso. Que nada, absolutamente nada que os alunos fazem escapa aos nossos olhos. Nossa conversa entredentes tampouco escaparia aos olhos perscrutadores daquela professora...

Assim que percebeu que estávamos conversando, ela voltou-se para mim e lançou a primeira pergunta. Vendo que eu tinha acertado, caprichou mais na segunda para que eu errasse. E conseguiu. Essa foi outra lição que eu só vim aprender depois: “Não é o aluno que é bom ou ruim; é o professor quem decide se ele vai ser bom ou ruim...” E como ela não queria que eu acertasse, eu errei. Foi aí que eu vi o quanto isso a deixou satisfeita. Revestindo-se do seu melhor sorriso, disse-me: - Queridinha, vou lhe dar um zero... Depois fez o mesmo com Alda e mandou que nós duas saíssemos da sala. Passamos o resto da tarde escondidas dentro do banheiro, com medo de que alguém nos visse e nos denunciasse, pois a ordem era bastante clara para aqueles que eram expulsos da sala. Mas ninguém nos viu, ninguém nos procurou. Estávamos livres.

Também só muitos anos depois eu aprenderia mais essa lição. “O destino de um aluno está nas mãos do professor. Se ele quiser que uma coisa não vá adiante, tudo se encerra ali.” Mas ela não quis encerrar ali. Dia seguinte, voltamos ao colégio, como se nada tivesse acontecido. Mas uns 15 minutos depois que a primeira aula tinha começado, vimos Manoel colocar a cabeça para dentro da nossa sala, como se procurasse alguém. Em seguida, ouvimos sua voz: “Lilian e Alda, venham comigo à diretoria.” Meu coração deu um pulo. Queria não ter ouvido aquilo, mas as palavras de Manoel continuavam ecoando nos meus ouvidos. Estava perdida! Com o rosto em brasa, nos levantamos, e em silêncio, acompanhamos Manoel. Lá na diretoria, tentamos lhe explicar, entre lágrimas, o que havia acontecido, mas não houve acordo. Havíamos transgredido uma lei e, por isso, tínhamos que ser punidas, ainda que isso lhe custasse muito. Dizendo isso, ele colocou o papel timbrado na máquina e começou a datilografar nossa condenação. Peguei o envelope e do alto dos meus 13 anos, olhei para o meu algoz e lhe disse: “Você vai morrer de remorso por isso, Manoel...” Mas nunca consegui sentir raiva dele. No fundo, eu sabia que ele nos queria bem e o que mais lhe doía era justamente não ter dois pesos e duas medidas.

Passamos oito dias proibidas de ir ao colégio. E nunca, em toda a minha vida, oito dias pareceram tão longos... Minha mãe soube da suspensão, mas meu pai não. E para esconder esse terrível segredo dele, eu fazia de tudo. Almoçava de farda e assim que ele saía para trabalhar, eu voltava a colocar a roupa de casa. E assim os dias foram se passando. Em silêncio. Um dia, pela manhã, como estava atrasada para ir à aula de educação física, pedi que meu pai me levasse. Para minha sorte, ele não disse nada durante o trajeto. Quando chegamos à esquina, pedi que ele parasse o carro, pois eu ia entrar pelo portão da rua D. José Thomaz. Estranhando meu pedido, pois a entrada e saída habitual dos alunos era pela rua Senador Rollemberg, quase morri quando meu pai me perguntou: - Por que você vai entrar por ali? Por acaso é por ali que os alunos suspensos entram? (Lilian Rocha)


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