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APRENDENDO NA FAZENDA

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 16 de nov. de 2017
  • 4 min de leitura

Sempre vivi na cidade, nunca fui mulher do campo. Como ninguém da minha família possuísse fazenda, não tenho muita experiência pra contar sobre a gostosura de subir em árvores, chupar frutas no pé, andar a cavalo ou catar besouros. Besouro, então, nem pensar, morro de medo. Meu único contato com a natureza deve ter sido na casa de minha tia Sylvia. No fundo da casa tinha um quintal com duas árvores, uma mangueira e uma goiabeira. A mangueira era muito frondosa e dois dos seus galhos eram muito convidativos. Nesses galhos, eu e minha prima Márcia passamos muitas das tardes de nossa infância, uma delícia! Subíamos com as mãos cheias de tralhas: rádio, papel, caneta, biscoitos e lá ficávamos a tarde toda, cada qual no seu galho, que para a gente era uma espécie de casa. Além dessa árvore, não me lembro de ter subido em mais nenhuma. Até hoje, tenho dificuldade de distinguir uma árvore de outra. Se não for mangueira nem goiabeira, nada feito.

Quanto aos animais, também sou um fracasso. Animais, pra mim, só no zoológico ou no circo. Meu único animal de estimação até hoje foi um coelho branco chamado Joca. Tentei transformá-lo num cachorrinho, desses que correm e abanam o rabo quando vêem o dono e por isso, deitava com ele na rede, cantando músicas de ninar, mas Joca não entendia nada. Nem balançava o rabo nem emitia nenhum sinal de vida. Coelho só gosta de cavar, não sabe fazer outra coisa. Um dia soltei-o no jardim da minha casa para lhe agradar, mas o estrago que ele fez foi enorme. Tive que mantê-lo preso na garagem e isso foi o começo do fim. Sem poder correr e tomar sol, Joca foi ficando seriamente doente. Suas pernas dianteiras foram ficando atrofiadas e ele mal saía do lugar. Fiquei preocupada e chamei o veterinário que imediatamente o levou para sacrificar. Com a morte de Joca, desisti de criar animais. Minha vida transcorreu assim, sem árvores e sem animais. Natureza, mesmo, só através dos livros infantis.

Até hoje confesso que sou avessa a qualquer aventura ecológica. Não tenho fôlego nem disposição para fazer trilhas nem subir em montanhas. Prefiro o conforto dos carros e elevadores. Mas isso não impediu que eu me tornasse muito amiga de Bezerra, um dos professores mais apaixonados pela natureza que já conheci. São muito interessantes os nossos diálogos. Ele não parece se importar com a cara de nojo que faço, enquanto ele fala de aranhas e minhocas... Certo dia, ele veio à minha procura para me falar de um projeto de educação ambiental que estava começando a ser gerado na sua cabeça. Na mesma hora, apostei na ideia e lhe dei força pra ir em frente. Mas não foi só eu quem acreditou nele. A administração da Fazenda Boa Luz também apostou e lhe ofereceu o espaço necessário para que ele continuasse sonhando. O projeto deu certo e foi batizado de “Aprenda na Fazenda”. Consistia em levar alunos de todas as escolas para vivenciarem, de maneira inovadora, a Biologia viva, que não está nos livros. E a Fazenda Boa Luz, por sua vez, deixou de ser só um hotel turístico para se transformar numa gigantesca e maravilhosa sala de aula. Centenas de alunos passaram a visitar semanalmente a fazenda, saindo de lá encantados com tantas atrações.

Um dia, Bezerra veio à minha sala me convidar para conhecer de perto o projeto. Pensei logo nos meus velhos joelhos, se eles iriam aguentar percorrer todas aquelas trilhas! Mas sem condições de recusar um convite tão amável, resolvi ir, juntamente com um grupo de professores. E qual criança, deixei que a natureza fosse enchendo de vida o meu espírito. De trenzinho, percorremos todas as estações do projeto: o zoológico, o curral, o minhocário, a farmácia viva, o viveiro de mudas e o haras. E a pé, percorremos as trilhas que nos levaram ao Vale dos Dinossauros e ao impressionante Mundo dos Insetos, onde réplicas perfeitas, aumentadas milhares de vezes, nos permitiram conhecer cada detalhe. Em silêncio, agradeci por eles serem quase microscópicos na vida real. Eu não aguentaria ver um ácaro tranquilamente tirando uma soneca na minha cama! Não, Deus certamente sabia o que estava fazendo, quando os criou!

Fim do passeio, hora de voltar. Olhei para mim mesma e quase não acreditei: eu havia passado no tal “teste ecológico.” Conheci muito mais do que mangueiras e goiabeiras naquele dia. Consegui ampliar meus conhecimentos sobre o reino animal e hoje já não chamo um caracol de caracol, mas sim de “gastrópode.” E aprendi que eles têm esse nome complicado, porque a principal característica deles é a ligação entre os pés e a massa visceral. Obrigada, Bezerra, pelo passeio inesquecível. Apesar do meu rosto queimado de sol e dos pés comidos pelas formigas, eu confesso que aprendi muito na fazenda, sim. Principalmente, a estreitar minhas amizades e não guardar, só pra mim, a admiração que tenho por você... (crônica extraída do livro "o Bilhete", publicado em 2006) -------------------------------------------------------------------------------------- Escrevi esse texto em abril de 2005, quase nove anos atrás. Esta semana fiquei sabendo que ele não está mais no colégio onde trabalhava e que o projeto ‘Cheirinho de Mato’, criado e desenvolvido por ele há 8 anos, 'agora vai funcionar’. Lamentei o ocorrido, principalmente essa última declaração, vinda de quem não conhece a nossa história nem nossos personagens. Senti como se me houvessem roubado uma história que ajudei a escrever. Por isso, deixo aqui para o professor Bezerra, as mesmas palavras que ouvi de meu pai, quando também me roubaram uma autoria: “Não se importe com isso, minha filha, você pode fazer quantos projetos quiser; já eles copiam, mas não sabem fazer...”


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