BORA, NETINHO...!
- Lilian Rocha
- 16 de nov. de 2017
- 5 min de leitura
Meu último filho tinha apenas um mês e meio, quando o vi pela primeira vez. Estávamos todos na casa de minha cunhada, uma casa de esquina enorme, em frente ao Iate, local perfeito para ver passar todos os trios elétricos bem de pertinho, pois naquele tempo, os trios ainda passavam pelo lado direito da Av. Beira Mar. Pra mim, essa possibilidade não me dizia nada, pois além de eu não poder pular carnaval porque tinha acabado de ter neném, eu nem fazia questão, pois 'aquilo', pra mim, não era carnaval. Carnaval 'de verdade' tinha que ter frevo e se axé não era frevo, também não era carnaval. Simples assim. E meu pensamento se perdia nas lembranças dos dois únicos carnavais de rua que eu havia brincado em Salvador, ainda adolescente. Lembrava das mortalhas que minha prima costurava pra gente, da animação dos meus primos e principalmente, do longo trajeto que percorríamos a pé, do Campo Grande até a Praça Castro Alves. Não sei quanto tempo levávamos pra atravessar aquela Av. Sete enorme, repleta de gente, nem tampouco como conseguíamos sobreviver a tantos empurrões e cotoveladas, mas o certo é que o sacrifício valia a pena, pois todo o espetáculo do carnaval acontecia realmente naquela praça. Ali era possível ver grandes nomes como Dodô e Osmar, Caetano e Gil e até os Novos Baianos dando um show em cima do trio, para todas as pessoas, indistintamente. Era verdadeiramente a ‘praça do povo’. Naquele tempo, só havia aquele circuito em Salvador. O carnaval de rua começava às 10 da manhã e terminava às 9 da noite. Daquela hora em diante, o carnaval continuava nos clubes. Mas pra gente terminava ali mesmo. Voltávamos devagarzinho, a pé, pela rua Carlos Gomes, molhados de suor e cansaço, cheios de histórias pra contar e ansiosos pelo dia seguinte... “Nada como se ter 16 anos...” – pensei – “É pena que a gente só possa viver a adolescência uma vez na vida...” De súbito, um barulho ensurdecedor foi se aproximando, fazendo com que quase todos dali corressem para o muro para ver ainda mais de perto. Alguém tinha feito uma faixa onde se lia, em letras garrafais “Netinho, pare aqui”, e agora lutava desesperadamente por um espaço no muro, a fim de exibir sua obra de arte. Protegendo os ouvidos do meu filho com o meu corpo, recuei em direção à sala, e fiquei observando. Não fazia a menor ideia de quem era aquele ‘Netinho’ e muito menos da razão de todo aquele frenesi. Em dado momento, o trio elétrico parou bem em frente à casa onde estávamos e o tal Netinho começou a cantar de frente pra gente, como se nós fôssemos o seu único público. A música era estranha aos meus ouvidos, assim como aquele novo jeito de dançar. E lá de cima do trio, ele conduzia uma complicada coreografia que era acompanhada por todos dali. Todos menos eu, claro. Estava me sentindo completamente fora do contexto, naquele carnaval desconhecido, sem frevo e sem cotoveladas. O que seria de mim? Ao mesmo tempo, não conseguia tirar os olhos daquela coreografia musical, cujo ritmo começava a desmanchar alguns velhos conceitos em mim. Em silêncio, fui forçada a admitir: ‘Taí, gostei desse cara’. No ano seguinte, como meu marido trabalhava na Brahma, ele ganhou convites e camisas para assistirmos ao Pré-caju bem de pertinho, ‘de camarote’. Naquele tempo, o evento durava quase uma semana. Começava no domingo, com o desfile do bloco infantil “Borinha”, que era puxado por Netinho; na quarta e quinta era a vez dos blocos alternativos e nos 3 últimos dias vinham os blocos oficiais, dentre eles, o “Bora-Bora”, conduzido também por Netinho. Todas essas informações me foram dadas enquanto eu me arrumava para o evento. Afinal, eu tinha ganhado camisa e ingressos. Por que não ir?! Sempre fui da opinião de que há certas coisas na vida que não prestam ‘assistir’, como por exemplo, jogo de buraco, quadrilha e carnaval. Pra mim, não tem graça nenhuma, só presta pra quem está participando. Por isso, assim que Netinho passou pelo camarote, senti um desejo irresistível de pular dali. Não vi a menor graça de ficar ali em cima, presa, esperando mais de meia hora por cada atração que durava não mais que 5 minutos... Coisa mais chata! O desejo virou ideia e a ideia foi criando corpo, pernas e braços. Não conseguia pensar em outra coisa. Queria porque queria sair no 'Bora-Bora'. Com a ideia na cabeça e o dinheiro no bolso, comuniquei o fato ao meu marido. Ele ficou preocupado: “Sozinha?” Evidente que não, eu ia com meu sobrinho. Além do mais, “eu tinha uma 'larga' experiência em carnaval de rua, não precisava se preocupar. "E quando eu chegar em frente ao camarote, eu visto a camisa da Brahma e me encontro com você." E foi assim que na sexta-feira lá estávamos eu e Gabriel, na Avenida Barão de Maruim, esperando o trio sair. Escolhi o lado direito do trio, pois dava pra ver Netinho bem de perto, e dali não saí mais. Não sei quanto media o percurso da avenida até o ‘corredor da folia’, mas a verdade é que eu nem senti. Aguentei firme. Eu e meus joelhos. Foram três dias de puro prazer, em que fui conduzida pela música e pelo carisma contagiante de Netinho. Ele havia conseguido o que eu julgava impossível: me fazer sentir adolescente outra vez. Mesmo com 5 filhos. Por isso me tornei uma de suas maiores fãs. Depois daquela, saí mais umas duas ou três vezes. E sempre no ‘Bora-Bora’, um bloco feito quase só de adolescentes que gritavam e deliravam, cada vez que ele parava em frente a um prédio para ler mais uma das centenas de faixas feitas para ele. E ele, pacientemente, lia uma por uma, distribuindo o seu carinho e a sua alegria, indistintamente. Quando ele deixou de vir a Aracaju, acabou também o meu interesse pelo Pré-caju. Esse fim-de-semana assisti a uma entrevista dele na TV, depois de quase 7 meses, internado num hospital, lutando bravamente pela vida. Quase não o reconheci, de tão magro e debilitado. Sentado num banquinho, Netinho chorou por diversas vezes, sinceramente emocionado, e com uma voz baixinha, relembrou antigos sucessos. Existem momentos únicos em nossa vida que não se repetem jamais. São como janelas que se abrem de repente, nos convidando a experimentar mais de perto a alegria da vida. Nesses breves momentos, vale a pena, sim, descer de onde a gente estiver e sorver a vida, em toda a sua plenitude, pois tudo é passageiro e tende a se modificar no instante seguinte. Foi isso o que eu pensei enquanto ele cantava. E do lado de cá, também torci por ele, pra que ele consiga novamente ‘tirar o pé do chão’ e sentir, mais uma vez, a vida lhe chamando: ‘Simbora, Netinho...! (Lilian Rocha – 04.02.14) http://www.youtube.com/watch?v=AWhy6MnnYAY

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