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DOR DE COTOVELO

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 16 de nov. de 2017
  • 4 min de leitura

Sempre fui boa nesse assunto. Sofrer por amor, amar e não ser correspondida, ser amada e não corresponder, enfim, já experimentei um pouquinho de tudo. Mas a pior dessas dores é quando a gente é deixada pra trás. Aí o mundo desaba, o chão foge aos pés e o travesseiro fica molhado de lágrimas que a gente guardou pra chorar sozinha e em silêncio. Entretanto, nunca entendi porque chamam a isso “dor de cotovelo”, se o cotovelo é, a meu ver, a parte menos afetada da história. Podia ser “dor de olho inchado”, “dor de nariz fungando”, “dor de nó na garganta”, “dor de coração apertado” e mais tantas outras que nossa imaginação dolorida permitisse... Dizem os entendidos que essa dor foi batizada assim porque as vítimas de mal de amor ficam horas com a cabeça apoiada sobre os cotovelos e por isso, eles acabam doendo de verdade. Mesmo assim, não me convence! Parece coisa de pinguço em mesa de bar! A menos que a vítima de amor seja alguém que já dobrou o cabo da boa esperança e alcançou aquela idade em que todo o corpo fica mais “sensível”, para usar uma expressão mais eufemística... Aí realmente isso é possível. Sem uma coluna vertebral mais resistente como a que tinha aos 20 anos, chorar na cama fica realmente inviável. Ademais, com a idade mais avançada, o sujeito não pode se dar ao luxo de passar horas trancado no quarto, amargando dores de amor. É preciso trabalhar, cuidar da vida. Se der vontade de chorar, a gente fecha os olhos, finge que está com dor de cabeça e a deixa apoiada, por alguns instantes, sobre eles, os famigerados cotovelos! Considerando também que esses pobres órgãos passam a maior parte do tempo sustentando a cabeça por outros motivos, vamos e venhamos que eles trabalham bastante! Quem, por acaso, não já recebeu uma inoportuna visitinha no local de trabalho e teve que ouvir, pacientemente, esse visitante dizer e repetir todos os incontáveis motivos que o levaram ali? Ora, quem seria mais paciente senão nossos cotovelos? Quando a cabeça perde a paciência, são os cotovelos que pagam o pato... Por tudo isso, resolvi vir de público reivindicar mais direitos a esses anônimos trabalhadores, que apesar de tudo ainda são tão ignorados pela grande maioria de seus donos. Afinal de contas, alguém lembra que possui cotovelos? Todo mundo só dá atenção ao coração, aos pulmões, aos rins, é um absurdo! O coração, então, é o mais paparicado de todos! Tem hospital só pra ele, revistas exclusivas à saúde dele, dietas especializadas para que ele fique sempre “magro” e saudável. Sem falar nos milhões de outros entendidos de coração que garantem que têm uma receitinha infalível para o mal do amor. Nem o cérebro tem tamanho prestígio! No entanto, desafio alguém a me responder se conhece alguma clínica especializada em cotovelos! O máximo que existe para eles é um cremezinho para deixá-los mais clarinhos. Apenas um cuidado estético, nada mais! Pois bem, estava eu aqui tranqüilamente na minha casa trabalhando, muito bem resolvida em matéria de amor, diga-se de passagem, quando comecei a sentir uma pequena dorzinha no cotovelo esquerdo. Estranhei que ele estivesse um pouco inchado, pois não o havia batido em lugar nenhum. Apenas estivera horas a fio escrevendo no computador e meu cotovelo muito bem, obrigado, apoiado em cima da mesa. De repente, entendi tudo. Havia estado muitas horas digitando numa mesa desapropriada e o pobre do cotovelo, esse simples subordinado a quem não é dado o direito de reclamar, ficou aguentando calado. Somente depois de muito tempo, é que ele chiou... Providenciei uma almofadinha para que ele ficasse mais confortável, mas não larguei o trabalho. Ele continuou reclamando. Pra não ficar ouvindo os lamentos dele, enfaixei-o inteiramente e dei-lhe um analgésico. Queria ver se ele ainda ia ter coragem de ficar me atrapalhando. Feito isso, voltei ao trabalho e à mesma posição. Quando finalmente terminei de escrever, tirei-lhe a mordaça e foi aí que eu vi o tamanho do estrago. Meu cotovelo estava duas vezes mais inchado e agora não parava de doer. Resolvi levá-lo ao médico. Lá chegando, fui obrigada a deitá-lo de bruços e segurá-lo firme, enquanto o médico lhe fazia uma infiltração à base de anestésico e corticóide. Depois morri de pena quando o enfermeiro o escondeu por detrás de uma tala de gesso e ataduras para que ficasse assim, imobilizado, por três dias. O diagnóstico foi exatamente o que eu esperava. Muitas horas na mesma posição terminara por inflamar a 'bolsa' (que na verdade chama-se 'bursa') de líquido sinovial que banha as articulações. Temos 'bolsas' como essa em cada uma de nossas articulações que funcionam, justamente, como amortecedores entre ossos, tendões e tecidos musculares. Daí o nome tão dolorosamente conhecido: 'bursite', que nada mais é do que 'bursa' + 'ite' (=inflamação). E agora estamos aqui. Enquanto escrevo com uma mão só, ele fica me olhando, caladinho, todo coberto atrás das faixas. E graças aos remédios, parou de doer. . Com isso eu descobri que ele é mais que meu simples cotovelo. Nem é apenas um simples segurador de cabeças. Deixemos isso, afinal, para o pescoço, que cumpre tão bem esse papel. Meu cotovelo é mais, um companheiro fiel, que me ajuda a levantar da cama, que chama discretamente a atenção de alguém - sobretudo naquelas ocasiões em que não podemos usar a boca - e sabe, como ninguém, abrir caminho em meio a uma multidão! Por isso, a partir de agora, meu cotovelo esquerdo será promovido a “braço direito”, pois só eu sei com que dificuldade coloco agora os acentos, as aspas e as letras maiúsculas... Querido cotovelo, não fique triste se ainda não lhe deram o direito de uma clínica só pra você. Um dia todos vão descobrir o seu verdadeiro valor, é só uma questão de tempo, acredite! E para lhe demonstrar todo o meu carinho, eu lhe dedico esta singela crônica, a primeira crônica que um cotovelo já ganhou. E isso não é dor de cotovelo... (Lilian Rocha - 21.03.05 – Ao meu cotovelo esquerdo, com carinho, e a Dr. Lécio Bourbon que o salvou.)


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