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EDUCANDÁRIO BRASÍLIA

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 16 de nov. de 2017
  • 6 min de leitura

Eu tinha 5 anos quando entrei lá. Tinha vindo do Jardim de Infância Augusto Maynard, de D. Bebé, praticamente o único ‘pré-escolar’ da cidade, onde a maioria das crianças dessa época também estudou. Este, estranhamente, continua intacto, sobrevivente de um tempo que já não existe. Sempre que passo por lá, meu olhar atravessa o portão e se perde nas lembranças daquelas salas, em forma de pavilhões, rodeado das mesmas árvores que espalhavam pelo chão umas sementes vermelhas e pequeninas, que faziam a alegria da gente. Nossa brincadeira preferida era apostar quem seria capaz de juntar mais sementes... Não cheguei a concluir o Jardim, nem tive formatura do ABC, como meus irmãos, até hoje não sei por quê. E também não sei por que, fui matriculada no pré-primário, em vez de no infantil. Ou seja, alguém fez o favor de me adiantar um ano, fato que só me trouxe vantagens, pois acabei entrando na universidade e me formando mais cedo.

O pré-primário funcionava na última sala, lá no fundo do colégio. À medida que íamos avançando de nível, avançávamos ‘geograficamente’ também, uma vez que as turmas mais adiantadas ficavam localizadas nas salas da frente. Em frente à minha primeira sala, havia um pequeno pátio, com uma árvore no meio e bem no cantinho, um minúsculo banheiro, construído em formato de casinha, com telhado e tudo, que servia apenas às crianças daquela faixa etária. Portanto, quando alguém precisava ir ao banheiro, era instruído a pedir à professora: “Posso ir na casinha?” Minha professora era linda e tinha um nome difícil, mas que eu nunca esqueci: D. Maria Stael. Nome de estrela, que me marcou pela doçura e despertou em mim a vontade de um dia ser uma professora igual a ela... Chamávamos todas respeitosamente de ‘dona’, mesmo que fossem jovens, e ainda hoje guardo com carinho o nome de todas essas ‘donas’ que me ensinaram a ler e a escrever: D. Norma, D. Selma, D. Helena e D. Alaíde. Fazíamos fila do lado direito da escola e de lá mesmo éramos encaminhados para nossas salas. Dificilmente entrávamos pela porta principal da escola, só quando estava chovendo.

Já o recreio acontecia numa pequena área interna que tinha poucos brinquedos e quase nenhum espaço para correr, mas a gente não se importava. Tratava de se divertir com as brincadeiras que não exigiam espaço, como aquela feita em dupla, só usando os braços. De pé, uma em frente a outra, cruzávamos os braços, batíamos palma e estirávamos as mãos que se encontravam ao mesmo tempo com as mãos da colega. Era uma perfeita ‘coreografia’ só de braços e mãos, acompanhada por uma canção que ajudava a dar ritmo à brincadeira e cujos versos envolviam os cantores da Jovem Guarda, uma delícia!

Quando entrávamos na sala, lá estava, ocupando os dois lados do quadro, o dever de casa. Tínhamos que copiar depressa, antes que a professora apagasse, pois depois do dever, vinha uma sequência de atividades que tinha que ser cumprida rigorosamente: leitura, ditado, cópia, contas, problemas... E enquanto estávamos ocupados, copiando qualquer coisa, a professora aproveitava para ‘tomar as lições’. De pé, ao lado dela, tínhamos que responder às perguntas e o que era pior, usando as mesmas palavras do livro. Depois ela nos atribuía uma nota, que por sua vez era colocada cuidadosamente num daqueles minúsculos quadrinhos da caderneta. Tudo valia nota e todas as notas iam para a caderneta que por sua vez tinha que voltar assinada pelo pai ou mãe. Por isso, assim que chegávamos, deixávamos sobre nossas carteiras a caderneta, já aberta, para facilitar o trabalho da professora que passava de carteira por carteira, recolhendo-as. As notas variavam de 10 a 100, equivalentes hoje, de 1 a 10. Menos de 50, a nota era vermelha. Também não havia essa facilidade de arredondar a nota não. Não foram poucas as vezes que tirei 99, só por causa de uma vírgula ou um acento esquecido. A última nota do dia dizia respeito ao comportamento, que na caderneta se chamava “Ordem”. Era a última coisa que a professora fazia e até hoje eu não sei que critérios ela usava para atribuir aquelas notas, pois depois de uma manhã cheia de atividades, como era possível lembrar o comportamento de cada aluno?...

De todas as lições que eu era obrigada a dar, a pior delas era a tabuada. Sempre tive dificuldade de decorar e aliada ao medo de errar, essa dificuldade se acentuava em mim. Um dia, a professora passou a adotar uma técnica ainda mais perversa: faria apenas 2 perguntas; se acertássemos as duas, levaríamos 100; se errássemos uma, a nota cairia para 50 e errando as duas, nem é bom lembrar... Foi justamente no tempo dessa invenção maquiavélica, que eu tive a sorte de sofrer um pequeno acidente... Estava com a minha família no Iate e quando fui pular na piscina, acabei batendo com a cabeça na borda, o que me rendeu um corte enorme na cabeça e o resto do fim de semana perdido. Meu pai me levou para o SANDU, uma espécie de posto médico de urgência, que ficava na rua Itabaiana, onde hoje funciona o Supletivo Walnir Chagas. Ali, eles rasparam parte do meu cabelo e me deram 6 pontos. Durante alguns dias foi essa a minha rotina. Antes de me levar para a escola, meu pai passava comigo no SANDU para trocar o curativo. Acho que nenhuma criança gostaria disso, mas eu adorava, pois além de ganhar um pirulito todos os dias de meu pai, em troca da coragem demonstrada na hora do curativo, quando eu chegava na escola, a famigerada hora da tabuada já tinha passado e ninguém me perguntava mais nada... Por isso, acho que devo ser uma das únicas remanescentes do Brasília que ainda hoje usa os dedos para somar. Mas antes assim. Prefiro a lembrança daquele curativo enorme na cabeça ao pavor de errar um daqueles números e levar nota vermelha...

Mas nenhuma lembrança do Brasília é mais marcante pra mim do que aquela escadinha vermelha da entrada. Era ali que a gente ficava esperando o pai na hora da saída. E foi ali também que um dia eu senti a maior solidão da minha vida... Acho que para uma criança, não tem nada mais pavoroso do que ser esquecida. Era isso o que eu pensava, enquanto esperava meu irmão Ricardo. Meu pai havia viajado e tinha designado ele para me buscar. Mas o tempo passava e nada de Ricardo aparecer... Sentei mais acima da escada e continuei esperando. Vi a porta grande se fechar para o almoço e o pátio de fora ir se esvaziando pouco a pouco. Vi dezenas de carros chegando e saindo, levando as crianças com suas pastas e merendeiras... Me agarrei ainda mais na minha pasta, como quem agarra a última coisa que lhe resta, e continuei olhando firme para o portãozinho. Mas ele não apareceu. De repente, vi outros carros chegando, trazendo outras crianças. Crianças sem farda, vestidas de roupa comum, que vinham para a banca. Senti vergonha da minha farda, pois ela indicava que eu ainda não tinha ido embora e consequentemente, tinha sido esquecida por alguém. E a sensação de ser esquecida, quando se tem seis anos é o mesmo que sentir que ninguém da família gosta da gente...

De repente, ouvi alguém se aproximando de mim. Era d. Hermelinda, uma das professoras de banca. Vendo-me ali sozinha, me tomou pela mão e me levou até o fundo do colégio, onde moravam D. Alaíde e sua mãe, D. Hermecila. Entrei com o coração apertado, segurando o choro, estranhando aquele ambiente e desejando, mais do que nunca, a minha casa. Preocupada com a hora, D. Hermecila me perguntou se eu estava com fome. Balancei a cabeça negativamente, mas ela me levou até a cozinha e pôs-se a preparar uma vitamina de banana pra mim, enquanto D. Alaíde tentava se comunicar com alguém de minha casa. Quando aproximei o copo da minha boca, senti meu estômago embrulhar. Não consegui tomar. Estava muito angustiada, achando que ia morar ali pra sempre, naquela casa de velhas, que cheirava à vitamina de banana... Por sorte, meu ‘resgate’ não tardou. Meu irmão reconheceu que havia se esquecido da incumbência que meu pai lhe dera e imediatamente foi me buscar. Passei uns dias com raiva dele, mas logo passou.

Só uma coisa, porém, ainda não consegui superar: minha aversão à vitamina de banana. Sempre que sinto o cheiro, lembro da angústia e do abandono que senti naquele dia...

Muitos anos se passaram depois disso. A casa onde funcionou minha primeira escola ainda existe e sua velha escada vermelha ainda enfeita sua entrada. Entretanto, não há mais sino, nem deveres, nem tabuadas. Nem alunos esperando por seus pais. Tudo hoje só existe em forma de lembranças. Mas hoje eu trocaria de bom grado tudo o que tenho para viver de novo, ainda que por alguns instantes, a angústia de esperar meu irmão... Pois pior do que a angústia de esperar por alguém que pode não vir, é a certeza de não ter mais aquele irmão por quem esperar...

(Lilian Rocha – 19.01.14)

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