EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Ela começou na esquina da rua Boquim com Itabaiana, quase em frente à casa onde eu morava. E foi uma novidade pra Aracaju! Afinal, uma escola de ‘dança moderna’, numa cidadezinha que só conhecia o ballet, tinha que dar o que falar! Naquele tempo, Aracaju era pequenininha e conhecia todo mundo pelo nome. Até a única escola de ballet que existia – era conhecida pelo nome da sua dona. Era o ‘ballet de Dorinha”, que funcionava na rua Lagarto. ‘Dorinha’ era como carinhosamente chamávamos Auxiliadora, uma das filhas de D. Ildete Teixeira, a confeiteira de bolos mais famosa da cidade. Teve dez filhos, todos muito bonitos. E foi ali mesmo, nos fundos da casa de sua mãe, que na década de 60, Dorinha montou a sua “Academia Sergipana de Ballet”. Muitas crianças fizeram ballet com ela, inclusive eu. Apesar de criança, lembro-me perfeitamente do salão grande onde tínhamos aula e o fascínio que eu sentia na hora de calçar a meia rosa e amarrar as fitas da sapatilha em volta do tornozelo. Poucos minutos depois, surgia Dorinha, loura e linda, em sua sapatilha de ponta. Parecia uma princesa. Antes de começar a aula, inevitavelmente, ela esfregava a pontinha da sua sapatilha no ‘breu’, um pozinho que ficava dentro de um quadradinho de madeira, a um canto da sala, que servia para dar mais aderência à sapatilha, evitando, assim, de escorregar. Com Dorinha, aprendi as cinco posições básicas dos braços e dos pés, além de movimentos famosos como ‘plié’, ‘demi-plié’, ‘tendu’ e ‘arabesque’, que depois eu repetia sozinha em casa, fazendo de barra a cabeceira da minha cama, sonhando com o dia em que também usaria uma sapatilha de ponta...
No fim do ano, ela apresentava o festival de ballet no Teatro Atheneu, um verdadeiro espetáculo. Lembro-me, particularmente, de um, chamado “O sonho de Natasha”, uma menina que sonhava que estava numa floresta e se encontrava com dezenas de animais. Coube à Ângela Margarida Torres, a melhor bailarina da época, o papel de Natasha, e a melhor cena, pra mim inesquecível, era o encontro do caçador com o pássaro. Não me lembro quem era o caçador, mas me lembro que o pássaro era Moema Maynard, outra grande bailarina, que roubava os aplausos de todo mundo, quando se debatia, em passos de balé, até tombar no chão, vítima da arma do caçador. Fui uma das três formiguinhas que Natasha também encontrou naquela floresta encantada e minha participação no palco foi tão breve quanto a minha carreira de bailarina, pois no ano seguinte, Dorinha se casou e como seu marido não queria que ela continuasse ensinando, ela teve que fechar a escolinha e com ela, foram-se todos os meus sonhos...
Foi quando uma certa baiana, chamada Lu Spinelli, desembarcou em Aracaju e virou nossa cidade de cabeça pra baixo... Chegou sem nada, com o marido e um filho de 4 anos, mas com uma determinação que eu nunca conheci igual. Começou por montar um pequeno estúdio e pôs-se a oferecer ‘dança moderna’. Em vez de sapatilhas, músicas clássicas e passos em francês, o universo de Lu eram malhas coloridas, pés descalços e coreografias inventadas por ela, ao som de músicas que comumente eram tocadas no rádio. Mas só quando ela se mudou para a Av. Ivo do Prado, foi que nós nos conhecemos. Fui uma de suas muitas alunas e ainda me lembro com detalhes do grande salão onde fazíamos aula. Além de professora, Lu era uma pessoa muito divertida, de alto astral, que não tinha muita paciência com tristezas. Por isso, eu gostava de ficar um pouco mais ali, depois que a aula terminava, só pra ouvir as histórias que ela contava, às gargalhadas, entre um cigarro e outro. Perto de Lu, tudo era simples e possível, pois ela era a primeira a rir de suas próprias dificuldades. Em setembro de 1974, Lu resolveu participar do III Festival de Arte de São Cristóvão, um evento grandioso que durava 3 dias e que enchia a cidade de gente. A programação contava com apresentações de música, dança, teatro e oficinas de arte. E lá fomos nós. Não me lembro quantos éramos nem tampouco quem foram meus companheiros de viagem, mas sou capaz de me lembrar de cada detalhe daquela aventura. Da nossa hospedagem no Convento do Carmo, da água que faltou para o banho, dos ensaios dentro da igreja, dos nossos risos que enchiam de vida aquelas paredes silenciosas e seculares, e finalmente, da nossa apresentação em cima de um palco de madeira improvisado, em plena Praça São Francisco, a mais importante da cidade, sob os olhares atentos de milhares de espectadores, vindos de todos os cantos do país...
De tudo isso me lembrei, quando estive ontem em São Cristóvão, acompanhando um casal de primos do Rio. Olhei para aquelas ruas e igrejas, tão minhas conhecidas, e a impressão que tive foi de uma cidade que parou no tempo. Foram-se os festivais, os cursilhos religiosos e até as serestas que enchiam de música suas ruas. Quarenta anos depois, a velha capital, palco de tantas manifestações artísticas e culturais e que traz no peito mais de quatrocentos anos de história, agoniza no esquecimento...
Como uma velhinha abandonada no asilo, que embora esteja sendo bem cuidada, continua a sua triste e solitária vida, ansiosa por visitas, por alguém que se interesse por suas histórias e divida com ela uma xícara de chá e um dedinho de prosa... (Lilian Rocha – 13.03.2014)

Comentarios