MUITO ALÉM DO JARDIM
- Lilian Rocha
- 16 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Assim se chamava um filme que eu vi há muito tempo, sobre um jardineiro, vivido por Peter Sellers, um homem completamente ingênuo, analfabeto, que nunca havia sequer saído de casa. O mundo dele se resumia ao jardim e à TV, suas duas grandes paixões. Quando seu patrão morre, ele é obrigado a enfrentar um mundo completamente estranho, ‘muito além do jardim’, que ele nem sequer sabia que existia. Não sei por que me lembrei desse filme quando me sentei naquele dia, em frente ao pequeno jardim da nossa casa de praia. Nada entendo de jardinagem e minhas poucas experiências nessa área foram sempre desastrosas. Certa vez, mandei construir um caramanchão em frente ao jardim e comprei uma muda de bouganville (também conhecida como ‘cabrita’), sonhando com o dia em que ela cobrisse meu caramanchão de flores. Empolgada, me sentei para plantá-la. Mas ela nunca deu o ar da graça. Nem crescia nem morria. Ficou ali, empacada debaixo da terra, só pra me dar desgosto... Alguém então, me aconselhou: “Você tem que conversar com as plantas... Elas precisam de uma palavra de carinho, de amor...” Disposta a seguir aquele conselho, sentei-me novamente ao lado da minha cabrita e passei a manhã revolvendo a terra, cercando-lhe de palavras carinhosas. Mas ela parecia irredutível, não me dava a menor bola. Um dia não aguentei mais e despejei-lhe um monte de desaforos: “Olha aqui, mocinha, eu já me cansei de você! Já lhe dei água, adubo e até conversar com você eu conversei. E você aí, do mesmo jeito. Pois fique sabendo que quem não quer mais nada com você sou eu. Se você quiser crescer, cresça, se quiser morrer, morra, não vou mais me importar." Depois desse dia, minha cabrita cresceu forte e exuberante e por alguns anos enfeitou de flores meu caramanchão. E eu descobri que até as plantas são temperamentais... A verdade é que as plantas e eu nunca nos demos muito bem, não sei por quê. Minha grama não cresce, minhas plantas não dão flores, meu jardim não evolui. Questão de temperamento, talvez. Assim como tem crianças que estranham, acho que as plantas também devem me estranhar. Mesmo assim, ainda não me dei por vencida. Vez por outra insisto em cuidar do jardim. Acho que essa atividade nos possibilita ver a vida em toda a sua dimensão... Vejo as mudas como pessoas, que devem ser plantadas, respeitando um pequeno espaço entre uma e outra. Nem muito perto para que uma não sufoque a outra, nem muito distante para que as duas não se tornem desconhecidas. A água também é fundamental. Todos os dias, um pouquinho. Assim como a atenção e o carinho. O segredo está na dose certa, pois excesso de carinho também não faz bem, como bem me ensinou a minha cabrita... Mas tampouco crescem os relacionamentos, se forem apenas regados todos os dias. Pois não basta regá-los; às vezes é preciso dedicar-lhes um pouco mais de tempo. Sentar-se num banquinho e, pacientemente, analisar o que está impedindo a planta de crescer. E isso nem sempre as pessoas estão dispostas a fazer... Minha mãe me ensinou que, num jardim, o mais importante não é molhar as plantas. É ‘revolver’ a terra. Uma palavra gostosa de dizer e que eu gostava de repetir quando era criança. ‘Revolver’ nada mais é que ‘mover em giro’; nesse caso, é o mesmo que 'cavar a terra para misturá-la'. Ou seja, quebrar em pedacinhos aquela parte seca da terra e trazer de baixo a terra mais úmida, rica em húmus, misturando as duas. Além de arejar, revolver a terra facilita a permeabilidade do solo, permitindo que as raízes penetrem melhor no solo. Em outras palavras, seria o mesmo que ‘discutir a relação’. Quebrar a secura, a indiferença, e trazer à tona tudo o que um dia foi importante e que tinha ficado esquecido, sob uma camada de terra seca... Não é revolver as mágoas e os ressentimentos. Muito pelo contrário. É renovar os sonhos, as esperanças e tornar o caminho a dois muito mais úmido e agradável de pisar... E depois de revolver a terra, é preciso também limpar os caminhos, arrancar aquelas ervas daninhas que insistem em crescer entre os espaços que deixamos. Ou seja, afastar aquelas pessoas sem raízes, que nada têm a nos acrescentar, mas que vão se infiltrando aos pouquinhos e acabam por destruir a harmonia de um casal... E por último, as formigas. Afinal, qual o jardim que não possui formigas? Formigas são como pessoas fofoqueiras, que levam um pouquinho daqui e trazem um pouquinho de lá, semeando a discórdia, enchendo de montinhos de areia nossa grama antes tão verde... Nesse caso, é preciso cuidado para não nos deixarmos levar por elas e muita garra e disposição para dar-lhes um fim, pois do contrário, elas destroem em pouco tempo aquilo que levou anos para florescer... Assim vejo o meu jardim. Em vez de plantas, árvores e formigas, vejo pessoas de temperamentos diferentes, dividindo o mesmo espaço, ansiosas, igualmente, por um pouco mais de água, sol e ar. Pessoas de tronco forte, capazes de enfrentar tempestades, graças às suas raízes, seus princípios; pessoas-parasitas, que nada produzem e vivem à custa do trabalho e do esforço das outras; pessoas-daninhas, que se aproveitam da carência de alguns para lhes roubar o espaço; pessoas-flores, suaves e perfumadas, cuja presença torna mais bela a nossa vida; pessoas-formigas, levando e trazendo, distorcendo conversas; pessoas que dão frutos e alimentam tantas outras... Mesmo pequenino, meu jardim me ensina muito sobre a vida e sobre essa misteriosa arte de conviver. Por isso, foi ali que resolvemos brindar à vida. A tudo o que plantamos e colhemos nesses 30 anos de vida em comum. Muito além do jardim... (Lilian Rocha – 25.02.14)

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