O BALANÇO
- Lilian Rocha
- 16 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Um dos dias mais puxados pra quem trabalha num banco é o dia 31 de dezembro. “Dia do balanço”. Sempre achei curioso esse nome, pois balanço, pra mim, era apenas um brinquedo feito de uma tábua suspensa por uma corda, que ia de um lado para o outro. Nada tinha a ver com trabalho, portanto. Podíamos nos balançar sozinhos, usando o nosso próprio impulso, ou ser balançados por alguém. Desse jeito era muito mais gostoso, pois o balanço podia ir mais longe e mais alto, provocando na gente aquele friozinho na barriga delicioso. Havia balanços em todo canto no meu tempo de criança. Nas famosas feirinhas de Natal do Parque Theófilo Dantas, os balanços eram em forma de barcos coloridos, uma lindeza! Sentávamos em dupla, uma em frente a outra, e depois de se certificar de que estávamos segurando bem forte a corda pendurada em nossa frente, o moço começava a empurrar o barco, de um lado para o outro, cada vez mais forte, enquanto a gente ria sem parar...
Mas os balanços também podiam ser perigosos e causar acidentes, como o daquela longínqua manhã de sábado... Eu tinha 7 anos. Estávamos na AABB, que naquele tempo funcionava na esquina da rua Riachuelo, onde hoje é uma agência do Banco do Brasil. Era um prédio grande, de andar. Na parte de cima, ficava o salão de festas, enorme e vazio, com um balcão ao fundo que fazia limite com a cozinha. Ainda me lembro dos refrigeradores azuis, enormes, com maçanetas de frigorífico, onde ficavam as bebidas. Não havia nada pra se fazer ali quando não tinha festas, mas mesmo assim, eu adorava subir sorrateiramente aquela escada branca, só pra ver de perto aquele salão. Gostava de imaginá-lo habitado, com mulheres lindamente vestidas, rodopiando pra lá e pra cá... Já o salão de baixo tinha mais vida. Era cheio de mesinhas e garçons circulando de um lado para o outro, equilibrando suas bandejas redondas de alumínio, repletas de copos, garrafas e aquelas batatinhas fritas, compridas e fumegantes, o sonho de toda criança... Ir à AABB aos sábados pela manhã era um dos programas favoritos de meu pai. Ali ele se encontrava com alguns colegas do banco e juntos jogavam algumas partidas de buraco, enquanto nós ficávamos brincando no parquinho, quase em frente à mesa dele. Não me lembro direito quais eram os brinquedos, lembro apenas que eles ficavam enfiados numa areia branca e que antes de entrarmos no salão, tínhamos que tirar o sapato pra despejar toda a areia de volta... Naquela manhã, não havia ninguém no parquinho, além de mim. Eu estava no balanço, e Ricardo, meu irmão mais velho, estava conversando com algum amigo, próximo dali. De repente, num impulso que fiz com o corpo para empurrar o balanço para a frente, acabei escorregando para trás e caí sentada na areia. Nesse exato momento, o balanço que tinha seguido sozinho, voltou mais leve e mais veloz, batendo em cheio na minha garganta... Tentei chorar, gritar de dor, mas a voz não me saía de jeito nenhum. Olhei para Ricardo, mas ele parecia bem distraído, não viu o que aconteceu. Meu pai também estava absorto no jogo. Ora, a única coisa que chama a atenção dos pais num momento como esse é o choro de uma criança. Mas eu estava sem voz, não conseguia emitir nenhum som. Como avisar a ele o que tinha acontecido? Como explicar a ele que eu tinha ficado muda?
Foi aí que me levantei, tirei a areia dos meus sapatos, depois entrei no salão e me sentei calmamente na mesa de meu pai. Pela primeira vez na vida, senti uma coisa chamada ‘resignação’. Eu tinha ficado muda para sempre. Aos 7 anos de idade. Meu pai me olhou, sorriu e me perguntou se eu queria guaraná e batatas fritas. Apontei para a minha garganta e de repente saiu um som abafado: ‘ai’. O grito que eu tentei dar e não saiu, agora resolvera sair fora de hora. Senti um alívio extremo. Acho que Deus teve pena de mim. Tentei contar o que tinha acontecido, mas quem vai acreditar na intensidade da dor de uma criança sem o choro? E naquele momento, já tinha passado a dor e o susto, não valia mais a pena chorar. Por isso, a dor daquele dia morreu ali mesmo, sufocada dentro da minha garganta. A partir daí, passei a respeitar mais os balanços. Nunca mais permiti que me empurrassem e nunca mais tentei ir além do que me era permitido...
Dia 31 de dezembro de 2013. Eis-me aqui, novamente, fazendo um balanço da minha vida... Para uma empresa, ‘fazer o balanço’ nada mais é que verificar a situação econômico-financeira, o levantamento de lucros e perdas, ou seja, o movimento de oscilação entre o que se ganhou e o que se perdeu. Por isso, se chama ‘balanço’, pois ninguém ganha ou perde o tempo todo. Há um movimento de oscilação na vida de todo mundo. Graças a Deus. Em 2013, me vi sentada outra vez naquele balanço da minha velha AABB. Fui para a frente e para trás, repetidas vezes... Tudo senti de mistura: prazer, alegria, decepção, infelicidade, medo... Vi o mundo do alto e sonhei alto. Sonhei com um mundo melhor, com pessoas melhores e mais verdadeiras. Sonhei em ser também uma pessoa melhor, capaz de compreender mais, perdoar mais e amar mais... De repente, escorreguei para trás e caí no chão. E como se não bastasse, o balanço me atingiu novamente, fazendo morrer em mim todos os planos que não consegui pôr em prática e todos os sonhos que eu tinha voltado a sonhar... Tão violenta foi a pancada que mais uma vez fiquei sem voz. Ninguém ouviu o meu choro nem a minha dor. Foi aí que me levantei, ‘tirei a areia dos meus sapatos’ e mais uma vez, senti aquela coisa chamada ‘resignação’. Nesse exato momento, a vida renasceu dentro de mim. Senti uma paz imensa...
Por isso, foi em cima do balanço que escolhi começar este novo ano. Para estar sujeita aos movimentos de oscilação da vida e me lembrar sempre que ninguém ganha ou perde o tempo todo. Tudo o que vem, um dia vai. Até mesmo a dor. Só uma coisa não quero que balance nunca mais. É essa paz que sinto hoje. E é com ela que brindo tudo o que está por vir... Tim-Tim! (Lilian Rocha – 31.12.13)

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