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O ESPELHO

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 16 de nov. de 2017
  • 3 min de leitura

Sempre gostei de histórias com espelho no meio. Lembro de “O espelho que vê por dentro”, que eu li uma porção de vezes quando era criança, das aventuras de “Alice no país do espelho” que me davam medo e até de uma de ‘Mandrake’, o mágico, que para salvar a namorada, certa vez, teve que entrar pelo espelho. Para conseguirmos ler esse pedaço da história, tínhamos que colocar a revistinha em frente ao espelho, pois as frases vinham escritas de trás para frente.

As histórias eram sempre estranhas; ora traziam um espelho mágico que falava, ora retratavam um outro mundo que existia por dentro do espelho, todo ao contrário. Todas elas brincavam com essa ‘possibilidade’ de que aquela imagem refletida pudesse ter vida. Como sempre tive muita imaginação, essas histórias mexiam muito comigo. E ai de quem quebrasse um espelho, teria que enfrentar pela frente nada menos que 7 anos de azar...

Mas ninguém foi mais genial do que Machado de Assis, ao escrever “O espelho”. Esse conto traz a história de um homem que aos 25 anos foi nomeado alferes da Guarda Nacional, equivalente, hoje, ao cargo de segundo-tenente. Ora, sendo este um posto difícil de alcançar, imediatamente tornou-se o centro das atenções de toda a família. Sua mãe, orgulhosa dele, passou a chamá-lo de “meu alferes” e alguns amigos, igualmente satisfeitos, o presentearam com a farda. Um dia, sua tia Marcolina, que morava num sítio distante, convidou-o para passar um mês com ela, pedindo, também, que ele levasse a farda. Lá chegando, ela não parou mais de abraçá-lo e de cercá-lo com todos os mimos possíveis. Deu pra ele o melhor lugar à mesa e exigiu que todos, sem exceção, o chamassem de ‘seu alferes’. Era ‘seu alferes’ pra lá, ‘seu alferes’ pra cá’... Tão grande foi o entusiasmo da tia que ela mandou tirar da sala e pôr em seu quarto um espelho grande, herança de família, considerada a melhor peça da casa. Dizia ela que o ‘senhor alferes’ merecia muito mais. O certo é que todo esse excesso de carinho e atenções acabou por transformar aquele homem. Em lugar do homem comum, existia agora apenas um homem inventado, inflado de vaidade. “O alferes eliminou o homem”. Um dia, a tia precisou se ausentar e ele ficou só com os criados. Mas assim que os criados se viram livres do jugo daquela senhora, abandonaram também o sítio, deixando o alferes completamente só. E é aí que começa o melhor da história... Sem ninguém para alimentar sua vaidade, o pobre homem vai se sentindo cada vez mais só. Então ele decide olhar-se no espelho, mas o que ele vê é apenas uma imagem vaga e difusa de si mesmo. Assustado, lembra-se de vestir novamente a farda de alferes e quando se olha, vê de volta sua imagem refletida no espelho.

Com essa história, Machado de Assis nos leva a refletir, que temos, nada mais nada menos, que ‘duas almas’: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro. A função dessa alma exterior é dar a vida, assim como a alma interior. As duas servem para ‘completar’ o homem. Se porventura o homem perde uma dessas metades, perde, naturalmente, metade da existência e há casos também, não raros, em que a perda da alma exterior faz perder a existência inteira...

A verdade é que esse conto sempre me intrigou. Assim como os espelhos. Têm pessoas que só se sentem ‘vivas’ quando estão em frente ao espelho. Lembram-me a rainha da história de Branca de Neve que vivia escrava do espelho, exigindo dele uma única resposta: a certeza de que ela era a mais bela. Aquele espelho era a ‘alma exterior’ da rainha. Já outros fazem do carro ‘sua alma’. Não podem viver sem ele. Passam os fins-de-semana a serviço dele, se perguntando, como a rainha, ‘se há carro mais belo’ que aquele...

A ‘alma exterior’, portanto, pode ser qualquer coisa: um celular, uma pessoa, um carro, um cargo, um salário... Enfim, qualquer coisa que ‘estimule’ a nossa vontade de viver. E não há nada mais prazeroso do que conseguir, à custa de algum esforço, aquilo que se constituía um sonho. Até aí, nada demais. O grande problema, pois, não é ‘vestirmos a farda de alferes’, mas ‘a forma como nos olhamos no espelho, vestidos com aquela farda’. Quando nos tornamos dependentes daquela imagem refletida e deixamos que essa ‘alma exterior’ sobreponha o que verdadeiramente somos. Quando deixamos que um ‘cargo de alferes’ elimine ‘o humano’ que há dentro da gente...

Há um ditado popular que diz: “Se queres conhecer um vilão, ponha-lhe um cargo na mão”. A este ditado, eu acrescentaria: “E um espelho na frente...” Porque muito mais perigoso do que um cargo é um espelho. Principalmente quando nos tornamos escravos dele e deixamos que nossa alma se transforme em apenas uma imagem distorcida do que um dia fomos... (Lilian Rocha – 08.01.14)


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