QUE SEJA DO JEITO QUE FOR...
- Lilian Rocha
- 16 de nov. de 2017
- 3 min de leitura
Pra dizer a verdade, eu não gostava dele. Nem dele nem da sanfona dele. Não era o meu tipo de música. Mas estava todo mundo tão empolgado, se preparando para aquele show tão esperado que eu não era doida de dizer aquilo. Ia acabar sendo linchada pelos meus primos. Por isso, fingi que gostava e que também estava muito animada. O show seria na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, numa noite qualquer daquele 1975. Talvez fosse julho, mês de férias, época que justificaria minha presença ali. Lembro-me somente que todos estavam muito apressados naquele dia e me apressavam também. Ninguém queria chegar atrasado, ninguém queria perder um minuto sequer do grande Luiz Gonzaga... Quando chegamos, já tinha bastante gente na porta. Alguém sugeriu que a gente não entrasse, ficasse ali, esperando ele chegar. Foi o que fizemos. Mas à medida que o tempo ia passando, mais envergonhada eu me sentia de estar ali. Devia ter inventado uma doença qualquer e assim, quem sabe, estaria livre daquilo... De repente, fez-se um tumulto maior. Era ele que estava chegando. E vinha no carro do pai de um dos nossos amigos, que nesse tempo costumava hospedar muitos artistas. Assim que o carro encostou no portão, ouvimos um acorde profundo de sanfona, seguido da voz inconfundível: “Vaaaaai.... boiadeiro que a noite já vem...” Imediatamente, os portões abriram e enquanto o carro entrava, um batalhão de gente seguia atrás, cantando junto com ele. Só encontramos lugar bem atrás, mas pra mim estava ótimo. Não queria estar ali, portanto, o lugar era o que menos importava naquela história. Eu só tinha que ter um pouco mais de paciência e dentro de duas horas, no máximo, tudo já teria terminado. E eis que ele começou a tocar. E quanto mais ele tocava, mais ele cantava, ou melhor, ele ‘contava’... Sim, porque as músicas dele na verdade eram verdadeiras histórias que ele ia emendando uma na outra, feito uma colcha de retalhos que a gente vai fazendo sem pressa... De súbito, me surpreendi rindo. A princípio, foi só um sorriso, tímido e ligeiro, mas depois veio outro e mais outro... Foi então que eu vi que eu estava gostando realmente daquele show e comecei a me desarmar. Fui me deixando levar pelas histórias engraçadas que ouvia e deixei, finalmente, que o riso saísse todo, espontaneamente. Naquele instante, percebi que Luiz Gonzaga tinha me conquistado para sempre. E em silêncio, agradeci por ter ido.
Há pessoas que nos cativam pelas lágrimas; outras, pelo riso. Não me considero uma pessoa mal humorada, mas também não tenho riso fácil. Não gosto de humor pastelão, nem de tipos caricatos que abusam do exagero para nos fazer rir. Não acho a menor graça. O que me faz rir é a naturalidade, a espontaneidade e principalmente, ‘o texto’ e o ‘contexto’. Ele tinha tudo isso. Sabia usar as palavras e arrancar risos da gente. Cantava como se estivesse conversando e suas histórias eram todas reais, pedaços de sua própria vida que nada tinha de colorida, mas que ele não tinha vergonha nenhuma de mostrar. A partir daquele dia, comecei a me interessar pelo universo de Luiz Gonzaga e principalmente a respeitar sua obra que, com o tempo, foi se tornando um verdadeiro tratado sobre o Nordeste.
Ontem vi o filme que fizeram sobre ele. Contado de um modo muito original, ‘de pai pra filho’, como se os dois atores fossem realmente pai e filho de verdade, contando tudo aquilo que a gente queria saber e tinha ficado sem resposta. Abandono, incompreensão, solidão. Tem de tudo nesse filme. Mas tem, principalmente, vida. A vida do pai refletida na do filho, a vida do filho como reflexo da vida do pai, a vida do pai se cruzando com a do filho, a vida do filho resgatando a do pai... E enquanto via os trechos das músicas de um e de outro se confundindo com as cenas da vida de ambos, recordei aquele trecho de minha vida que eu julgara esquecido. Aquela longínqua noite de julho, perdida no tempo, em que tive a honra de vê-lo bem de pertinho e do quanto resisti até dar o primeiro sorriso... “Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo, é uma gota, é um tempo que nem dá um segundo...” E é nesse menos de um segundo que tudo pode mudar dentro da gente. Principalmente, o modo de vermos a vida. Às vezes, ela se parece leve como o sorriso que dei naquele dia; outras vezes tem gosto de lágrima, feito aquela que derramei durante o filme... Mas não importa. "Que seja ela do jeito que for..."
(Lilian Rocha – 17.12.13)

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