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“A MOÇA E O DINHEIRO”

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 7 min de leitura

Quem não conhece ou não já ouviu falar da famosa fábula de Esopo, chamada “A moça e o balde de leite’? Nessa história, a personagem principal é uma moça pobre que tece sonhos e mais sonhos, a partir do dinheiro que espera receber com a venda de uma vasilha de leite, até que esta cai de sua cabeça e com ela, todos os seus sonhos...

Na nossa história, temos como personagem principal uma professora, também pobre e trabalhadora, que dava aulas numa tradicional escola de sua cidade. Um dia, após trabalhar durante todo o ano, decidiu que sairia de férias, em busca de um merecido repouso. Fez as malas, comprou uma passagem à prestação e após passar todas as suas dívidas para a responsabilidade de sua mãe, partiu. Quando voltou, encontrou sua mãe aflita e uma triste notícia: o dinheiro deixado por ela não dera para pagar todas as dívidas. - Mas como não deu? Se tenho anotado tudo o que devo e sei quanto recebo, não é possível que isso tenha acontecido!

Imediatamente, foi comparar seus contracheques e constatou uma diferença de CR$12.000,00 entre os meses de janeiro e fevereiro. Intrigada, decidiu verificar o porquê daquilo. Seu salário já era pouco e aquele dinheiro já estava lhe fazendo muita falta. Assim, decidiu ir ao ponto de partida, o banco.

“Vai ver que houve uma falha por lá e logo tudo se esclarece, basta pedir com jeito. Além do mais, esses CR$12.000,00 que eu vou receber, vai me ajudar a comprar alguma coisa que até lá, estarei precisando! Talvez a entrada de outra passagem para Brasília e lá eu volto a encontrar aquele moço que vi da outra vez e quem sabe até, eu indo lá agora, ele me peça em casamento e eu encontre um emprego por lá... Mesmo que seja para trabalhar um turno só, pois depois virão os filhos e eu terei que estar em casa para cuidar deles...”

Completamente imersa em seus pensamentos, chegou ao banco e foi falar com o gerente que, educadamente, respondeu-lhe que isso não cabia a ele e que ela deveria ir à Secretaria de Administração. Prontamente, ela tomou um táxi e lá chegando, mostrou o maço de contracheques e pediu uma explicação. Mostraram-lhe uma folha de papel onde se encontrava anotada a ampliação de sua carga horária, concedida com um ‘prazo fechado’, de março a dezembro. - Como está escrito aqui que é em prazo fechado, a partir de janeiro, sua carga horária foi reduzida à carga inicial. - explicou a funcionária. - Mas como um ‘prazo fechado’, se eu não pedi para reduzi-la? - Minha filha, esta foi uma comunicação que recebemos da DEC. Aqui, nós apenas cumprimos as ordens que nos chegam. Seria melhor você resolver diretamente com a sua diretora.

No dia seguinte, chegou furiosa à escola e foi direto à diretoria. Não entendia a história daquele prazo fechado, mas se tinha sido a sua escola quem tinha enviado aquele ofício à DEC, somente lá é que tudo se esclareceria. - Evidente que não fomos nós. – explicou a diretora - O ofício que mandamos daqui é com ‘prazo indeterminado’, ou melhor, nós nem mencionamos prazo algum. Por que você não vai falar com alguém da seção de Pessoal lá na SEC?

Sai outra vez a pobre moça, com o maço de contracheques na mão e a xerox do ofício que não tinha prazo na outra. Toma outro táxi e em poucos minutos, lá está ela, na seção de Pessoal da Secretaria de Educação. As palavras lhe saem quase decoradas, de tanto que já as havia repetido. Dessa vez, uma pista: alguém lhe mostra um prontuário cheio de processos e, numa das folhas, o maldito prazo fechado assinado... pela DEC! - Agora só você indo na DEC... Eu é que não posso resolver esse problema...

Para não dar mais uma viagem perdida, ela tenta um rápido contato pelo telefone com a autora da façanha que, muito calma, afirma-lhe que é bastante a escola lhe enviar um novo ofício, retificando que ela havia trabalhado normalmente, sem substituir ninguém, e assim, tudo ficaria normalizado. - Bem, se é assim, é fácil conseguir isso da escola... – pensou – Mas, em todo caso, amanhã mesmo vou na DEC, pra ela me explicar isso direito.

Na DEC, a moça finalmente consegue encontrar uma secretária muito eficiente e solícita, que logo se dispõe a ajudá-la, fazendo um rascunho do que seria o novo ofício que sua diretora teria que fazer. Mas assim que a diretora leu o rascunho, teve uma reação inesperada: - Minha filha, se eu for fazer esse ofício, ele vai ter que passar pela DEC e lá vai demorar tanto, que você não vai conseguir reaver esse dinheiro, já que estamos perto da mudança do governo... O que eu posso fazer é um ofício, dizendo que você está dando 200h e ressaltando que não mencionem prazo algum, para que não aconteça o mesmo que aconteceu agora, em 1982. - Nada disso! Isso é em termos de futuro! Eu tenho direito a esse dinheiro agora e não vou deixar passar. Por isso, tente fazer esse ofício, por favor. - Minha filha, eu vou ser bem sincera com você. Eu acho que você não vai conseguir esse dinheiro. Vai demorar muito e daqui a 3 dias, muda tudo. Por que você não vai pessoalmente falar com o Secretário de Educação? Ele é uma pessoa tão tratável... Tenho certeza de que ele resolveria o seu problema. Se a falha foi dele, eu é que não posso consertar, pois eu mandei o ofício certo.

Furiosa com tamanha sinceridade da diretora, a moça toma outro táxi e vai para casa, onde fica a matutar sobre o problema. Mas agora que entrara na briga, iria até o fim. ‘Se querem me cansar, pois bem, vamos nos cansar todos juntos. Se é pra resolver com o secretário, tudo bem, eu mesma vou falar com ele. ”

Decidida, compra uma roupa e uma sandália, e depois de se arrumar toda, dirige-se à Secretaria de Educação. Mas antes de chegar ao gabinete do secretário, ela é obrigada a repetir toda sua história. Alguém lhe orienta a tirar uma xerox do ofício que continha o tal prazo fechado e,depois lhe brinda com palavras incentivadoras: - Acho muito difícil você conseguir isso...

Mais um breve encontro, antes do encontro decisivo: a secretária do secretário! Muito disposta a ajudar, pede-lhe para contar todo o problema. E com ar descrente, encaminha-a ao secretário. Frente a frente com o secretário, a mocinha passa a narrar, pela 12ª vez, o seu problema. Depois de ouvir atentamente todas aquelas queixas, o secretário lhe pergunta, curioso: - E o que a senhorita quer de mim? - Quero que o senhor me devolva meus Cr$12.000,00, só isso! Estou cansada de ir pra lá e pra cá e ninguém resolve nada! Surpreso com a resposta, o secretário dá uma gargalhada e diz: - Pois bem, eu vou lhe ajudar. A senhorita vai receber seu dinheiro de volta. E dizendo isso, pega o telefone e chama sua secretária. - D. Mary, por obséquio, peça ao chefe do setor de pessoal que me telefone agora para me explicar qual o problema dessa professora. Vamos resolver o problema dela. “Pelo menos nisso a diretora acertou. Esse secretário é mesmo um homem muito tratável...” – pensou ela.

E a ligação foi feita. O chefe do setor de pessoal lhe explicou, então, que a chave para a resolução do problema estava justamente no ofício que a sua diretora precisava fazer... - Pronto! Assim que sua diretora fizer o ofício, diga-lhe que venha até aqui, pessoalmente, me entregar, para que as coisas andem mais depressa. Muito agradecida, a mocinha saiu feliz da vida, certa da vitória. Mas assim que expôs o pedido do secretário à diretora, ela teve uma reação surpreendente: - Se você é quem está sendo lesada, você mesma pode requerer isso e levar pra ele. - Mas como assim? EU? Se eu não possuo autoridade nenhuma pra isso? Ele disse que era para A SENHORA fazer o ofício. Sem lhe dar atenção, a diretora se dispôs a redigir, ela mesma, o requerimento no nome da moça, pedindo-lhe para vir buscar no outro dia. Derrotada, sai a nossa heroína, sabendo que tinha sido enganada mais uma vez. Estava claro que ela não podia requerer isso. Quando estava prestes a desistir, lembrou-se da diretora da DEC. Era sua última esperança. Mal entrou e se apresentou, teve uma recepção calorosa. Todos já sabiam quem era ela, onde trabalhava e qual era o seu problema. A diretora da DEC explicou-lhe que existiu, de fato, um prazo fechado, mas só para as pessoas que estavam substituindo alguém, que não era o seu caso. Mas só era preciso a minha diretora mandar um outro ofício, pois como ela iria despachar naquela mesma tarde com o secretário, aproveitaria para resolver com ele o meu problema. - Sinto muito, mas eu prefiro que a senhora mesma ligue para a minha diretora. Eu já tentei fazer isso várias vezes e não consegui... Ela então ligou e pediu-lhe que resolvesse tudo aquela manhã. Em seguida, olhou para a professora e disse-lhe, com um sorriso: - Pronto, está tudo resolvido. Acho que até o fim do mês você recebe esse dinheiro. Satisfeita?

Depois de agradecer mil vezes, a mocinha saiu aliviada. Parecia que agora tudo estava resolvido. Agora era tratar de esquecer ofício, requerimento, DEC, SEC e todas as desventuras pelas quais tinha passado e pensar apenas no que ia fazer quando recebesse aquele dinheiro... Quando se deitou para descansar, seus olhos se depararam com uma cadernetinha. Numa folha à parte, algumas anotações apressadas: Gastos da semana: 7 táxis 1 roupa 1 sandália 3 lanches 2 xerox --------------- Total: Cr$12.000,00 (Lilian Rocha)

(N.A.Esse texto foi escrito em 1982, quando eu trabalhava numa escola pública. Hoje, arrumando meus papéis, encontrei-o e resolvi publicá-lo, pois apesar do tempo, tenho certeza de que muita gente ainda sofre com essa mesma 'eficiência' do serviço público... :)


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