A CASA DE MINHA AVÓ
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Certa vez, senti vontade de entrar lá outra vez. Fingi que ia escolher móveis para um escritório que eu não tinha e entrei, vinte anos depois.
Entrei por onde um dia fora a sala de visitas, o lugar mais inabitado da casa. Essa sala tinha três janelas que davam para a rua, mas viviam permanentemente fechadas, talvez por isso mesmo. Nunca entendi porque tinha esse nome, se as poucas visitas que ali apareciam nunca entravam por aquela sala e sim, pela área estreita e descoberta, que levava até a outra sala, outrora chamada de ‘sala de estar’.
Sempre achei esse nome antipático, pois não expressava coisa alguma para mim, mas hoje percebo que não há melhor expressão para definir o que era aquela sala. Essa, sim, era uma sala enorme, onde ficavam os móveis mais importantes da casa: uma mesa com seis cadeiras de espaldar alto, um buffet e duas cristaleiras, todos feitos da mesma madeira escura, formando um conjunto. Mas o que mais me agradava naqueles móveis era o acabamento em espiral que ficava na lateral deles. Sempre que eu passava por eles, eu os fazia girar, só para vê-los subindo e descendo...
Além desses móveis, havia também uma mesa com a televisão, uma radiola e a cadeira de balanço de meu avô Theódulo. A radiola, então, era um capítulo à parte. Na verdade, era um móvel estreito e comprido, composto de duas peças: um rádio do lado esquerdo e do lado direito, um toca-discos embutido que para vê-lo, era necessário abrir a tampa de cima. Isso, para mim, se constituía uma das maiores curiosidades, pois só quem podia mexer ali era meu avô ou meu pai. E eu adorava assistir àquele processo de escolher um disco, geralmente de 78 rotações, e depois abrir a tampa e colocá-lo para tocar.
Por isso que aquela era verdadeiramente uma ‘sala de estar’, pois era ali que nos deixávamos estar, na maioria das vezes, conversando, vendo televisão ou fazendo hora para o jantar... A cadeira de balanço de meu avô ficava em frente ao corredor que era recoberto por um tapete vermelho e bem comprido. Ao lado do corredor, ficavam os três quartos da casa: o primeiro, de meu avô; o segundo, mais conhecido como ‘o quarto do meio’, onde dormíamos enquanto esperávamos a hora em que meu pai ia embora e o terceiro, o de hóspedes, que era o mais claro de todos, pois tinha comunicação com a sala de visitas.
Entrei ali procurando reconhecer, em meio àqueles armários e mesinhas de computador, parte da minha infância, mas nada encontrei. As salas, os quartos e até o corredor tinham se transformado num único vão, frio e impessoal. Também desapareceram a copa onde fazíamos refeições, o banheiro com a banheira branca e o sabão Phebo de meu avô e até a cozinha onde tantas vezes esperei, impaciente, junto ao fogão, as tapiocas que minha mãe e minha avó faziam juntas para o jantar de domingo.
Era essa a nossa rotina. Todos os domingos, religiosamente, íamos todos jantar na casa de minha avó. Chegávamos por volta das 5 da tarde, bem a tempo de pegar o segundo tempo do jogo que meu avô ouvia pelo rádio e íamos direto a ele pedir a bênção. Meu avô era um flamenguista apaixonado e a hora do jogo, para ele, era sagrada. E enquanto durava o jogo e as tapiocas não ficavam prontas, nós ficávamos com a tarefa inglória de arrumar a mesa para o jantar. Inglória não pelo serviço em si, mas porque era quase impossível encontrar uma xícara que combinasse com o pires e este com o prato. A louça de minha avó era assim, toda ‘independente’. Se uma xícara ficava ‘viúva’, ela jamais jogava fora; arranjava logo um pires, também viúvo, e tratava de fazer o casamento.
Aliás, se tinha uma coisa que ela sabia fazer como ninguém era aproveitar coisas. Aproveitava vidrinhos vazios para transformá-los em novas garrafinhas de água, aproveitava a última água do enxágue das roupas para molhar as plantas e aproveitava também o que havia sobrado do almoço, normalmente galinha, para colocar no prato da gente, com a maior naturalidade. E só depois de servir todo mundo é que ela se sentava para jantar. E se estranhássemos a estranha mistura que ela fazia no prato, ela ria e respondia: - Mas não vai misturar tudo isso dentro da barriga?
E assim eram todas as noites de domingo. Depois do jogo, meu avô desligava o rádio e ligava a televisão, para vermos “Os Trapalhões” e logo em seguida, ‘Fantástico’. Por volta das 9 e meia, quando começavam os gols do Fantástico, meu pai se despedia e minha mãe nos recolhia, sonolentos, para irmos embora.
De tudo isso me lembrei, ali parada. De súbito, percebi que a área aberta, que ficava ao lado de onde fora a copa, continuava igual. Com o coração batendo forte, expliquei à moça que me atendia o que eu estava fazendo ali e pedi licença para ir ao quintal, pois se aquela área havia sido poupada, certamente o quintal também teria sido.
E como num filme, revi, com os olhos cheios d´água, a casinha do gás, o banheiro de empregada com aquele chuveiro de cordinha que tanto me fascinava na infância, a lavanderia, o quintal e o galinheiro, recantos sagrados de minha avó, e até o quartinho do cachorro. Estava tudo intacto, como se esperando por mim. E uma a uma, minhas lembranças foram sendo contadas para a vendedora que me olhava espantada, sem entender como um quintal velho podia causar tamanha emoção em alguém...
Confesso que por muitas vezes eu maldisse aquela rotina, por não ter um domingo inteiro como todas as minhas amigas, mas nada como o tempo para nos ensinar a dar valor ao que realmente tem valor. Por isso, desde que me casei, fiz questão de reservar todas as noites de domingo para jantar na casa de meus pais. Para que meus filhos também experimentassem esse mesmo hábito de jantar aos domingos ‘na casa de vovó’. Tenho certeza de que um dia essa rotina pra eles também terá um valor inestimável. Assim eu quereria passar este domingo. Acalentada pelas lembranças da casa de minha avó e aconchegada pelo carinho da casa de meus pais...
(Única foto que tenho do interior da casa, onde mostra parte da sala de estar e meu avô sentado na sua velha cadeira de balanço)

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