"A DIFÍCIL DECISÃO DE MÁRCIA"
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Assim se chamava a primeira (e única) radionovela que escrevi, há cerca de 25 anos atrás, quando trabalhava na rádio Aperipê. Primeira, única e inédita, diga-se de passagem, pois foi gravada em fita de rolo e como eu não tenho um aparelho próprio para ouvi-la, até hoje ela continua assim, intacta, guardada e esquecida em algum armário da minha casa.
A novela foi escrita graças à insistência de Hamilton Leandro, um colega que eu conheci, quando fui trabalhar na Rádio Aperipê. Era baiano e tinha sido um ator de radionovelas muito famoso por lá e, por isso, vivia sempre com um pé no passado, recordando seus áureos tempos. Como tinha uma voz lindíssima, Hamilton era sempre o escolhido para gravar as vinhetas da rádio e chamadas dos programas.
Fizemos logo amizade e dessa amizade nasceu uma longa e produtiva parceria. Meu primeiro programa na rádio, idealizado pelo meu grande e saudoso amigo, Cleomar Brandi, chamava-se “Sem medo de errar” e tinha como objetivo ensinar português através de cenas teatrais. Eu escrevia pequenas histórias, com dois ou três personagens e, de repente, no meio da conversa, um deles cometia um erro de português. Nesse momento, então, entrava um sinal eletrônico, seguido da minha voz corrigindo o erro. Esse “programete” durava cerca de 1 minuto apenas, mas era inserido na programação da rádio 4 vezes por dia. Ou seja, apesar de pequenininho, dava um trabalho danado para fazer.
Normalmente eu escrevia 4 ou 5 histórias de uma vez, para que pudéssemos gravar todas numa mesma tarde, já que só havia um estúdio de gravação naquele tempo. E adivinhem quem era o meu parceiro inseparável? Sim, ele mesmo, Hamilton Leandro! Acho que ele vislumbrou, naquele pequeno programa, a oportunidade de reviver o grande ator que ele fora um dia. E eu confesso que usei e abusei do talento dele! Contracenamos juntos em mais de 200 histórias e aprendi com ele vários truques de sonoplastia que se usavam nas antigas novelas de rádio.
Mas Hamilton queria mais, queria que eu escrevesse uma novela, imaginando que essa ideia pudesse realmente vingar e, com isso, ressuscitar a era das novelas de rádio. Hamilton era um sonhador mesmo! E eu mais ainda, pois acabei embarcando no sonho dele e fazendo o que ele me pediu...
Imaginei como protagonista uma moça chamada Márcia que era muito bem casada e estava radiante, pois se descobrira grávida de gêmeos. Só que sua felicidade é bruscamente interrompida quando, aos três meses, o médico lhe confirma que ela está com rubéola e isso pode afetar o desenvolvimento dos fetos, que podem nascer surdos, cegos ou com os membros incompletos. E aí começa o dilema de Márcia, pois enquanto muitas pessoas lhe aconselham o aborto, outras se mostram terminantemente contra. Mas essa “difícil decisão” só cabia mesmo a ela.
Escrevi a novela em apenas uma semana e nos preparamos para gravá-la. Hamilton se encarregou de arranjar os demais atores ali mesmo, por entre os corredores da rádio. Chamou o diretor, locutores esportivos, jornalistas e até a moça da cantina. Todo mundo virou ator! E se alguém dissesse que não sabia, que não levava jeito para a coisa, ele se oferecia para ensinar.
E entre trancos e barrancos, nossa novela ficou pronta. Gravada, editada, com trilha sonora, sonoplastia, chamada e tudo! Saiu até reportagem num jornal! Mas nunca foi ao ar. Simplesmente porque de nada adiantaria a gente colocar no ar uma novela e pronto. Teríamos que dar continuidade ao projeto e eu jamais iria ter fôlego para escrever uma novela atrás da outra. Só mesmo na cabeça de Hamilton Leandro...
Mas muito embora a novela nunca tenha ido ao ar, a história na qual eu me inspirei para escrever continua mais viva do que nunca! Na verdade, “Márcia” existia e era casada com meu irmão Ricardo. Depois de 3 filhos, ela ficou grávida de gêmeas e, aos três meses, teve rubéola. Tudo isso aconteceu em 1991, enquanto eu trabalhava na rádio. Vivi esse drama de perto e creio que foi por isso que a novela foi escrita em tão pouco tempo, pois a história já estava dentro de mim. E tal como narrei na minha novela, Márcia seguiu sua intuição, confiou em Deus e decidiu por levar sua gravidez até o fim. Em troca, Deus lhe deu duas gêmeas saudáveis, que nasceram sem nenhuma sequela.
A partir daí, Márcia se tornou, para mim, um sinônimo de fé, força e coragem. Foram vários exemplos nos quais eu tive a chance de estar perto, presenciando tudo. Lembro-me das inúmeras noites em que fiz companhia a ela no hospital, enquanto meu irmão esteve internado, em estado terminal. Os sobressaltos na madrugada, os engasgos dele, o medo, o escuro da noite... E ela ali, junto dele, acalmando ele, emprestando pra ele a coragem dela, dizendo baixinho que tudo ia ficar bem...
Três anos depois, fui eu a entrar com ela num lugar horrível para reconhecer seu filho adormecido para sempre, num caixão de zinco, sem camisa e sem sapatos. E durante todo o tempo em que durou aquele calvário, ela se manteve de pé, firme e corajosa, muito embora destroçada por dentro...
Assim é Márcia, uma personagem real que me inspirou a escrever minha primeira novela. Essa novela nunca foi ao ar, mas a personagem continua me servindo de inspiração, graças ao seu poder de decisão, sempre firme e preciso. Sua decisão de optar pela vida das filhas foi difícil, mas acertada. E diante do filho morto, eu a vi, também, morta para a vida, tendo que tomar a mais difícil das decisões... Mas novamente ela optou pela vida. E em troca, Deus lhe deu mais duas netas. E ela voltou a sorrir...
(Lilian Rocha - 27.3.16)

Comments