A PASSAGEM SECRETA
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 5 min de leitura
Quando entrei no Arqui pela primeira vez, tinha apenas 10 anos. Como tantos, fui atraída por alguns boatos que circulavam pela cidade: "O Arqui vai ter piscina"! Ora, o que hoje parece uma tolice, não o era em 1969, tempo em que a gente contava nos dedos as piscinas de Aracaju. E um colégio com piscina era um verdadeiro sonho para uma criança de 10 anos! E assim, fui matriculada na 1ª série de ginásio, que depois virou 5ª série e hoje, 6º ano. Como me senti bonita e importante na minha farda nova! Era uma saia cinza, toda plissada, uma blusa branca, de poliéster, meias brancas, sapatos pretos Vulcabrás e, no bolsinho da blusa, um escudo de metal com o símbolo do colégio. Meu Arqui era grande para meus olhos de criança! Onde hoje é o auditório, havia três salas de aula, todas de ginásio. Estudei nas três: 5ª, 6ª e 7ª série. No primeiro andar, ficavam outras salas de ginásio e o científico. Perdi as contas das vezes em que me sentei à sombra daquelas velhas mangueiras para olhar os rapazes do científico, que passavam os intervalos das aulas debruçados nos murinhos, olhando com desprezo para nós, "crianças" do 1° grau. Como eu desejava ser do científico! Só assim eu usaria saia justa e blusa rosa, em vez de branca e, quem sabe, seria mais respeitada por eles...
Cada intervalo das aulas era uma loucura pra ver quem chegava primeiro no speed-ball, um esporte que, nessa época, só existia no Arqui. Toda essa gostosura consistia num mastro fincado no chão e uma bola pendurada por uma corda que, por sua vez, era presa no mastro. O objetivo de cada dupla de jogadores era enrolar a bola num sentido e impedir que a dupla adversária enrolasse primeiro no sentido contrário. Quando o sinal tocava para entrar, lá estávamos nós, com o rosto vermelho e completamente suados, num misto de cansaço e prazer...
Mas o gostoso mesmo do Arqui eram os horários vagos. A gente aproveitava e ia explorar o colégio. Subíamos sorrateiramente as escadas do 2º andar, o lugar mais proibido do Arqui, pois era ali onde dormiam os seminaristas, e na outra ala, ficava o apartamento do padre. Só o soalho era escuro, velho e fazia um barulhão quando andávamos por ali. No 2º andar ficava também a biblioteca com a doce Irmã Augusta. Desde aquele tempo, era ela quem fazia as capas dos nossos trabalhos escolares. De vez em quando, nos batíamos com um seminarista pelos corredores e saíamos correndo, entre risos e sustos, uma delícia...
Onde é o RH hoje, ficava a cantina e comandando tudo, nossa velha Morena. Aliás, Morena estava em todos os lugares ao mesmo tempo: na cantina, pelos corredores, no portão, sempre atenta, sempre vigilante, sempre fiel ao Arqui, fiel ao padre, fiel ao seu dever.
E, finalmente, a quadra de esportes. Era um campo todo gramado, cercado por um muro baixinho. Ali, fazíamos educação física e alguns esportes como vôlei e handball. Tento forçar a memória para lembrar como é que a gente às vezes escapava do colégio pelo campo, mas não consigo. Lembro-me, apenas, que por algum lugar a gente ia parar na igrejinha N.S. Menina, que ficava exatamente no fundo do colégio. Imaginem vocês que pecado! Pra gazear, a gente passava pela Igreja, nos ajoelhávamos, pedíamos desculpas à N.S. e lá estávamos nós na rua de Itabaiana, rumo à Cinelândia, em busca do picolé mais gostoso da cidade, livres de qualquer culpa ou remorso... Mas logo o padre descobriu essa "facilidade" e tratou de fechar essa passagem.
Quanta saudade sinto de você, meu Arqui! Você me viu crescer, foi cúmplice do meu primeiro namoro, meu primeiro beijo. Nas suas escadas vermelhas me sentei várias vezes, para chorar as mágoas de amor, me sentindo a pessoa mais infeliz do mundo. É de se esperar, pois com 14 anos, a gente exagera tudo...
Em 1973, cheguei ao científico, mas não usei saia justa. O Arqui tinha mudado a farda. Em vez de saia e blusa de botões, passamos a usar calça jeans, blusa de malha e tênis, uma verdadeira inovação. Fui estudar no 1º andar e confesso que também olhei com desprezo as "crianças da quinta série". Agora já me sentia uma veterana. Em novembro de 75, desci pela última vez suas escadas e cruzei a porta de saída, rumo ao vestibular. Confesso que nem olhei para trás nem nunca mais voltei para vê-lo. Estava com a cabeça cheia de sonhos, ocupada demais com o futuro. Não havia tempo a perder com saudades. Aliás, é assim que a gente se sente aos 17 anos. Sem tempo para as saudades. Saudade é coisa de velho, que não combina em nada com nosso espírito de adolescente...
E o tempo passou. Tornei-me professora, casei, tive filhos. E uma por uma, as experiências foram se sucedendo. Fui professora de pré-escola, de ensino fundamental, de curso pedagógico, do ensino médio... Ensinei em escolas, ensinei em casa, ensinei pelo rádio e pela televisão... Um dia, recebo um convite singular do Pe. Carvalho para ensinar Português e, “nas horas vagas, ser uma espécie de mãe para os alunos". Nem pensei duas vezes e disse a ele que sim. Na verdade, não estava dizendo ‘sim’ só a ele, mas ‘sim’ às minhas lembranças, à possibilidade de voltar ao meu colégio tão querido, palco da minha adolescência, onde vivi algumas das experiências mais doces de minha vida. E foi assim que em 1995 entrei outra vez no meu colégio, 19 anos depois. Procurei minha cantina, meu campo gramado, a escada por onde eu subia escondido pra tocar o sino, mas nada disso encontrei. Foi aí que eu vi como o tempo passou e como nós crescemos! Meu Arqui havia se transformado numa verdadeira cidade, de 4.200 alunos, toda informatizada e moderna, com capela, auditório, teatro, coral, jornal, posto médico, carpintaria, livraria e tudo o mais que há em qualquer cidade. Meu antigo campo gramado havia virado um imenso e belo ginásio de esportes e lá no canto estava ela, a minha tão sonhada piscina...
E durante 18 anos, vi outras piscinas serem construídas, outras cantinas, outras escadas... Vi pessoas saindo, pessoas entrando... Vi o tempo passar, impiedoso como sempre, carregando junto com ele histórias e lembranças de um tempo que também foi meu... Até que um dia, tudo chegou ao fim, como acontece em todas as histórias. Meu ciclo havia terminado e era hora de partir.
Talvez o mais difícil de qualquer partida seja a faxina, pois nem tudo cabe na nossa mala de volta. É preciso selecionar rapidamente o que vai e o que fica, pois o nosso tempo acabou. E alguém espera do lado de fora, ansioso, para dar início a uma nova história....
Lembro que olhei em volta, sem saber por onde começar. Havia vestígios de saudade por todos os lados da minha sala: nas paredes, nas gavetas, prateleiras e armários. Pedaços de uma história bonita que eu não tinha coragem de rasgar... Entre lágrimas, fui enfiando tudo em sacolas de papel e pedi que as levassem para um depósito, onde permanecem até hoje. Nunca tive coragem de abri-las. Assim como ainda não tive coragem de fechar essa pequena passagem secreta que me conduz às melhores lembranças de você...
(Lilian Rocha - 4.8.16)
(Aos meus queridos colegas de um dia e amigos de uma vida: Artur, Silvana, Suzana, Carlos Correia, Maria Angélica, Wilma, Silvana Maria Sandra, Lívia, Corina, Armando, Gileno, Margarite Delmondes, Cristina Garcia
Comentários