A SERESTA
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Eram sempre às sextas-feiras à noite as serestas do Iate. Exatamente nas vésperas das provas de Química no colégio. Até hoje não entendo por que razão nosso professor escolhia sempre as manhãs de sábado para aplicar prova. Coisa mais sem graça... Com toda certeza, ele não devia gostar de seresta. Nem do Iate, nem da gente, claro! Porque um professor que ama verdadeiramente seus alunos deve entender que, para os alunos, existem muito mais coisas interessantes entre o céu e a terra do que aqueles famigerados elementos químicos de sua ‘vã tabela periódica’...
Era isso que eu pensava todas as sextas-feiras, quando me via dividida entre o céu da seresta e o inferno, não de Dante, mas de Ricardo Feltre, o autor do meu livro de Química...
Naquele tempo, a situação dos alunos diante de matérias como Física e Química era tão trágica, que alguém teve a feliz ideia de selecionar os alunos em dois grupos: um da área de Saúde e Exatas e outro de Humanas. Nas provas de Humanas que o grupo de Exatas fizesse, a nota seria multiplicada por 1,5. E o mesmo aconteceria para o grupo de Humanas. Não se tratava de ‘distribuir nota de graça’ para os alunos, mas de um raciocínio lógico, considerando que os pesos das provas de vestibular também variavam de acordo com o curso escolhido pelo candidato.
Ora, se eu ia fazer Pedagogia e as provas de Química, Física e Matemática tinham peso 1 no vestibular, nada mais justo que o peso dessas provas na escola também fosse mais baixo, para que a gente pudesse se dedicar mais às matérias que tinham maior peso para nós, como Português, História e Geografia. Da mesma maneira para os alunos que iam fazer Engenharia. As matérias de Humanas teriam um peso mais baixo. Assim, ninguém sairia prejudicado, porque essa história de forçar os alunos a aprenderem o conteúdo extenso e acumulativo de 12 matérias, simplesmente não me convence. Pra que esse exagero? Por que não direcioná-los, de fato, para o curso que eles querem seguir? Afinal, se alguém não conseguiu aprender nem gostar de uma matéria, tampouco vai conseguir nas vésperas do vestibular...
Meu colégio teve essa brilhante ideia em 1975 - quase 40 anos atrás - e a aprovação no vestibular foi de 100%! Sem contar que nesse tempo tínhamos 180 dias letivos e 4 meses de férias!!! Mais uma prova de que 'quantidade' nunca foi sinônimo de 'qualidade'!
Como professora, cansei de ver dezenas e dezenas de alunos, às vésperas do vestibular, sem tempo nenhum de estudar as matérias de peso para eles, porque estavam pendurados em Química e Física... Como também já vi excelentes alunos (que depois passaram muito bem no vestibular para Exatas) aflitos porque estavam quase reprovados em Literatura!
Fui professora por mais de 30 anos e sei perfeitamente que existem aptidões que devem ser respeitadas. Tenho respeito por todas as disciplinas, sei que cada uma tem o seu valor, mas desde que fui apresentada à Química, aos 15 anos, senti de antemão que não tínhamos nada em comum e por isso, nunca poderíamos 'estreitar os nossos laços'. De modo que vivemos muito bem assim, ela lá e eu cá. Nos cumprimentamos de longe, cordialmente, mas nossa amizade não passa disso...
Como também entendo perfeitamente quando um aluno tem aversão pela análise sintática, porque não consegue entender o que uma oração subordinada substantiva objetiva direta pode mudar em sua vida... Entendo porque também fui aluna e sei que para os alunos existem muito mais coisas interessantes entre o céu e a terra... Como uma seresta, por exemplo!
O problema era um só: como acalmar o conflito dentro de mim? Se eu corresse e fosse pra seresta, o bicho do remorso me pegava, porque eu não ia conseguir me distrair; se ficasse, o bicho da vontade me comia, porque eu não ia conseguir estudar nada, só ia ficar pensando na seresta...
Foi aí que Lívia, minha colega e companheira desses mesmos conflitos, teve uma ideia luminosa: “Vamos levar o caderno de Química pra seresta! Assim, a gente pode estudar lá.” Sem pensarmos duas vezes, colocamos o caderno de química dentro da bolsa e seguimos para a seresta, felizes da vida, sem nenhuma culpa...
Passamos a noite ali, na balaustrada, em frente ao salão do Iate, onde acontecia a seresta. Entre uma música e outra, abríamos o caderno, dávamos uma olhadinha nas fórmulas, mas logo nosso pensamento se deixava levar novamente pela música...
No dia seguinte, às 7 da manhã, estávamos no colégio. O grupo de exatas tinha passado a noite em claro estudando. E nós duas, de humanas, também... Tiramos 6,0 na prova. O grupo de Exatas tirou 8,0 e torceu o nariz pra gente. Mas na hora que o professor multiplicou nossa nota por 1,5, ficamos com 9,0! Para desespero dos nossos colegas cdf...
Acho que aquela foi a melhor de todas as serestas do Iate. A única que eu nunca esqueci. De tudo isso me lembrei, quando estive ontem no Iate e vi aquela velha balaustrada... Uma seresta, um caderno de química e uma infinidade de lembranças deliciosas, que às vezes também escapam teimosas de dentro do meu coração...
(Lilian Rocha - 17.05.14)

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