A SÍNDROME DE SILVIA
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 2 min de leitura
Naquele dia ela chegou carregada, trazendo uma radiola numa das mãos e no outro, a caderneta, um monte de papéis e um disco. Mas chegou sorrindo, como sempre. Sem dizer nada, procurou uma tomada, distribuiu os papéis, ligou a radiola e deixou que os primeiros acordes da música invadissem a sala. Eu tinha 13 anos, mas nunca me esqueci daquela aula de Inglês. A música era “Sylvia” e o cantor, Elvis Presley. E ela, uma professora linda, baixinha e de voz suave, chamada Sílvia. Tão suave que ninguém lhe ouvia...
Sílvia foi uma das poucas professoras-amigas que tivemos. Gostava de conversar com a gente, ensinava por prazer, não por necessidade. Acho que era por isso que gostava de inovar... Mas nossa turma não estava preparada para tamanha inovação! Nunca havíamos ouvido falar em aula de inglês com música. E por isso, a aula foi ainda mais bagunçada que de costume... Enquanto Elvis ia arrancando versos apaixonados e a nossa pequena Sílvia tentava traduzir o que ele cantava, bolinhas de papel voavam em todas as direções... Como senti pena dela naquele dia! Ela não nos merecia como plateia...
E como era de se esperar, Sílvia não passou muito tempo no Arqui. Ao contrário de outros professores que marcaram época ali. Mas marcaram pela mesquinhez, pelo terror que inspiravam nos alunos. A uma dessas professoras “marcantes” eu sou “grata”, pois tudo, absolutamente tudo que eu não aprendi em geografia, devo a ela. Estudei com ela durante 5 anos. 5 longos anos de pavor. Talvez nenhum dos meus colegas daquele tempo se lembrem mais de Sílvia, mas dessa outra, garanto que ninguém consegue se esquecer.
Mas desde que virei professora do Arqui, era exatamente de Sílvia que eu mais me lembrava. Quantas vezes me vi perdida no meio da sala, com minha vozinha miúda, tentando ensinar o que ninguém queria aprender... Sílvia nunca soube o quanto eu gostava das suas aulas nem o quanto aquela aula me marcou. Naquele dia, enquanto Elvis cantava, eu disse a mim mesma que eu queria ser uma professora igualzinha a ela.
E assim fui durante trinta e dois anos. Me recusando a repetir coisas que me pareciam abomináveis, como aquelas famigeradas arguições que me enchiam de pavor no tempo de aluna, eu me "revestia" de Sílvia e entrava na sala de aula, muitas vezes, também, carregando um aparelho de som e a cabeça nas nuvens... Fiz das minhas aulas verdadeiros momentos de prazer, não de necessidade. Ensinei com música, com desenhos, com jogos, com jornal, com paródias, com filmes, com teatro. Inventei dominó de adjetivos, bingo de coletivos, supermercado de palavras, desfile de tempos verbais... Contei-lhes histórias de minha vida, sentei-me no chão com eles, ouvi confidências, torci por eles, intercedi por eles, chorei com eles. Sei que pequei muito pela minha paciência, pelo meu excesso de tolerância, mas foi assim que eu aprendi a amá-los, assim escolhi ser lembrada, assim escolhi ser feliz...
(Lilian Rocha - 16.3.16)
https://www.youtube.com/watch?v=qOEQVMwzjQo

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