A VELHA AGULHA
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Sempre gostei de música. Acho que se minha vida tivesse trilha sonora, eu seria capaz de listar todas as músicas que um dia serviram de pano de fundo para grandes acontecimentos...
Sou do tempo em que só havia rádio AM e que o melhor programa musical era a "Paradinha do Chicão", na Rádio Atalaia. Também tive um radinho de pilha, que dormia e acordava comigo. Mas meu sonho mesmo era ter uma radiola portátil, igualzinha a que minha irmã mais velha ganhou quando fez 15 anos.
Por isso, quando comecei a trabalhar, aos 17 anos, investi meu primeiro salário na realização desse sonho. Entrei na loja "A Sugestiva" e comprei minha tão sonhada radiola. Uma Phillips marronzinha, com tampa de acrílico e duas caixinhas de som. Linda! A partir desse dia, passei a repetir, religiosamente, o mesmo ritual: escolhia um disco – compacto ou LP - , sentava-me no chão do meu quarto e fazia da minha cama a minha mesa. Escrevi muitas e muitas cartas assim.
Quando o disco estava perto de chegar ao fim, eu estava no auge da minha carta e por isso, não podia interromper. Mas a minha radiola me entendia perfeitamente e por isso, dava ordens à agulha para ela voltar sozinha até o disco. Ela obedecia e parava na metade da penúltima música. E era exatamente com esse restinho do disco que eu escrevia melhor. Porque o processo se repetia sem parar, estimulando cada vez mais a minha inspiração... Se o disco fosse um compacto, era mais fácil, pois a agulha caía exatamente no começo da mesma música.
Nesse tempo, já havia radiolas incrementadas, que sustentavam 3, 4 Lps no alto e à medida que um disco acabava, o próximo disco caía automaticamente. Um fascínio! Mas a minha radiola era bem mais pobrezinha. Se eu quisesse o automático, tinha que me virar com o meu automático de pobre...
Depois vieram os cds. Aquele disco pequenininho que cabia dois lados de um LP! Como era possível? E ainda por cima, ninguém precisava virar o disco, pois ele só tinha um lado! Fiquei tão fascinada com os cds que imediatamente quis ter um aparelho de cds! Só que eles eram caros, não era qualquer pessoa que podia comprar. Mas quando eu enfio uma coisa na minha cabeça...
Entrei numa loja e fiquei horas manuseando os milhares de cds, encantada com o barulhinho de acrílico que eles faziam, quando se encostavam uns nos outros... Até que escolhi um. Uma coletânea de Caetano Veloso, com quase 20 músicas. Ficou sendo o meu cd de número "001". Em seguida, comprei outro objeto de desejo: um porta-cd vertical, onde cabiam 12 cds. Voltei pra casa feliz da vida com minhas duas aquisições. Agora só faltava o aparelho... Passei uma semana olhando meu cd e sem poder ouvi-lo. Até que não aguentei mais e fui sozinha resolver meu problema.
Entrei numa loja de departamentos e pedi um aparelho de cd. A vendedora me mostrou um monte. Claro que eu não conhecia nenhuma especificação, eu só queria ouvir meu cd e pronto! Foi aí que a vendedora me mostrou um aparelho quadradinho, que me encheu os olhos. Era bem menor que os outros e portanto, não ocuparia espaço nenhum. Cheguei em casa radiante e fui correndo pegar o meu cd. Quando coloquei, cadê que ele não rodava? Comecei a ficar nervosa... Foi aí que meu marido perguntou: “Cadê o cabo?” - Que cabo? - Isso que você comprou não é um aparelho, é só um adaptador. Pra funcionar, tem que ter um cabo acoplado ao aparelho de cd. E como nós não temos nenhum aparelho de cd...
Juro que tive vontade de matar a moça que me vendeu aquilo, mas é claro que a burrice fora toda minha. E pra resolver aquilo, só havia um jeito: comprando um aparelho de cd. De preferência, um microsistem, pra não precisar de cabo nenhum!
Depois daquele, comprei dezenas, centenas de cds. Virei uma ‘compradora compulsiva de cds’. E uma colecionadora compulsiva também. Passava horas e horas numerando e catalogando meus cds, criando tabelas e mais tabelas, com índices das músicas, dos cantores, um verdadeiro prazer!
E depois que fiz um acervo fantástico de cds, eis que chegaram os computadores equipados com toca-cds e depois com gravador de cds! Foi o fim das radiolas e microsistems...
E se os computadores engoliram os microsistems, os pendrives passaram a engolir os cds. Até hoje não entendo como é que uma coisa tão pequena é capaz de armazenar tantas informações, fotos, músicas e muito mais... Haja estômago!
Foram-se as radiolas, os microsistems, os cds. Hoje já não se compram mais cds, "baixam-se" músicas pela internet (nem me perguntem como!!) e como num passe de mágica, temos qualquer música que a gente queira, até mesmo as mais improváveis...
Só uma coisa não mudou. Minha paixão por música. E mesmo depois de tanto tempo, continuo repetindo o mesmo ritual, um tanto quanto mais moderno, porém. Em vez de discos, escolho no meu computador a seleção de músicas que quero ouvir e assim que uma delas invade minha alma, seleciono a opção ‘repeat’ e finjo que é a agulha da minha velha radiola, cúmplice silenciosa das minhas emoções e das minhas lágrimas...
Há músicas assim, tão fortes que entram na gente, como se entrassem pela veia. Entram e sem a menor cerimônia, vão direto até nossa alma. Lá, desarrumam tudo, reviram armários, gavetas, papéis, descobrem cheiros e imagens... Nada fica no lugar.
E cá de fora, fica a gente, impassível e impotente, diante de tantas lembranças, torcendo apenas para que a velha agulha repita o mesmo movimento e torne a tocar aquela música mais uma vez...
(Lilian Rocha - 07.08.14)
PS: Segue abaixo uma das milhares de músicas que encantaram a minha vida...
https://www.youtube.com/watch?v=61fAHKcJNQo

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