ATRAÇÃO FÍSICA
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Dizem que todo sonho que se sonha só é só um sonho, mas quando é compartilhado, vira realidade. Não poderia ser diferente comigo. Acostumada a sonhar de olhos abertos, precisava de alguém, no Arqui, que desse guarida aos meus sonhos, de alguém que acreditasse nos meus projetos e aceitasse transformá-los em realidade. Caso contrário, meus sonhos nunca passariam de meros sonhos...
Pois bem, antes mesmo que eu me pusesse à cata dessa pessoa, minha alma foi mais rápida e colocou no meu caminho justamente um professor de Física, isso mesmo, de Física! Estranha é a alma da gente quando resolve eleger alguém... Ora, Física sempre foi um dos meus piores martírios na escola! Nunca consegui descobrir, por exemplo, a distância percorrida por um carro que vinha da cidade A até a cidade B, simplesmente porque nunca consegui controlar a velocidade da minha imaginação. Mal eu avistava o tal carrinho e já embarcava nele rumo a uma imaginária cidade C. E durante esses meus devaneios, acredito que nenhum professor foi capaz de vencer a distância que meu pensamento percorria e trazê-lo de volta à realidade da sala de aula...
Lembro-me de uma prova de Física que tive de enfrentar, certa vez. Era cheia de gráficos. Eles deviam estar ali por algum motivo, certamente para facilitar a vida dos alunos, mas não a minha. Olhei para eles, apavorada, pois não tinha a menor ideia do que fazer com eles. Ao meu redor, todos os meus colegas estavam em silêncio, concentrados, fazendo a prova. Para não dar na vista, resolvi me concentrar também, usando, não o meu raciocínio, mas a imaginação que sempre tive de sobra. Comecei, então, a juntar as linhas dos gráficos, depois criei outras linhas que se juntaram às primeiras, até que minha prova ficou cheia de barquinhos à vela. Devo ter ficado bastante concentrada nessa tarefa, pois o professor não percebeu nada e julgou que eu estivesse mesmo resolvendo a prova. Assim que tocou, todos entregaram a prova e eu, os meus barquinhos.
Dois dias depois, o resultado. O professor, cauteloso, entregou minha prova por último e me chamou em particular para uma conversa. Parecia muito preocupado comigo. Perguntou-me, muito sério, o que aqueles barquinhos significavam, se eu estava com algum problema em casa, pois ele achava que aquilo era uma fuga, coisa muito comum em adolescentes. Olhei para ele, espantada, e respondi-lhe sorrindo que eu não tinha problema nenhum, muito menos em casa! “Meu único problema, professor, é com a Física!”
Mas parece que a alma da gente não tem boa memória. Era mesmo com um professor de Física que eu iria, a partir dali, dividir todos os meus grandes projetos profissionais. E minha alma não se enganara! Escolhera um professor de Física totalmente fora dos padrões convencionais. Primeiro foi o seu carisma com relação aos alunos que me chamou à atenção. Depois, a sua inventividade e, finalmente, o gosto pelas artes. Graças ao incentivo dele, vi o Arqui inteiro se revestir de motivação e entusiasmo para viver o delicioso período das Gincanas. Através dele, fui me interessando cada vez mais pelo teatro. A princípio, éramos como rivais silenciosos. Apostávamos numa turma e nela trabalhávamos, a fim de transformá-la em campeã. Nunca consegui vencê-lo, porém. Sua liderança e seu talento sempre foram insuperáveis. Resolvi, então, me aliar a ele, me oferecendo para dividir as tarefas e as preocupações que eventos desse tipo costumam causar.
E a parceria começou a dar certo. Juntos, pensamos numa nova proposta pedagógica para o Arqui, juntos enfrentamos verdadeiras maratonas de ensaios e espetáculos no Teatro Atheneu, por ocasião da Mostra de Teatro, juntos dividimos vários dos nossos sucessos e fracassos. Esse meu parceiro de sonhos me fez ver a Física de outra maneira. Uma física que se faz presente não em forma de gráficos, mas em forma de cores, de sons e principalmente, em forma de música.
E é justamente na música que mais nos damos bem. Quando descobri que a Física era parceira da Fonética, criei um personagem em uma de minhas peças para homenageá-lo, imortalizando, assim, nossa amizade. Chamava-se “Tio M” e entendia tudo de acústica.
Mas o “Tio M” de verdade existe e se chama Ricardo Monteiro. Vive em alta frequência, pois é intenso em tudo o que faz. Mil vidas eu tenha e jamais saberei calcular a velocidade com que ele percorre os corredores do Arqui, nem a energia de que ele dispõe para estar sempre disponível a me ouvir, pois nada entendo de cinemática nem de dinâmica, mas graças às lições de acústica que aprendi, posso dizer que nele meus sonhos encontraram eco e reverberação...
-------------------------------------------------------------------------------- Esse texto faz parte do meu livro “O Bilhete”, publicado em 2006. Foi escrito especialmente para Ricardo Monteiro, na época professor de Física do Arqui e meu grande parceiro profissional. Costumo dizer que o Arqui teve duas fases bem distintas: uma com Ricardo e outra sem ele. Vivi ambas as fases e sei perfeitamente da grande distância que separa as duas. Hoje estamos ambos afastados do colégio que nos uniu, mas cada vez mais unidos pela mesma história que escrevemos juntos e que nem mesmo o tempo haverá de apagar. Parabéns, Ricardo, pelo seu aniversário, pela sua amizade, simples e verdadeira, e sobretudo, pelas doces lembranças que seu nome me desperta!

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