CAI O PANO
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Ainda me lembro dos últimos minutos antes de começar aquele espetáculo: alguns ajustes na iluminação, os últimos retoques no figurino, ansiedade nas coxias. Por detrás das cortinas, diabos, fantasmas, maridos, amores e mendigos esperavam a hora de se apresentar pela primeira vez na minha vida. Do lado de fora do palco, sentada na primeira fila para não perder um detalhe sequer, eu aguardava ansiosa o início do espetáculo. O cenário? Uma sala de aula, desarrumada, barulhenta, mas cheia de vida. Quando tudo pareceu silenciar, fiz sinal para que abrissem as cortinas das minhas lembranças...
De repente, entre trapalhadas endiabradas, um adorável Faustino invade o palco e, me olhando nos olhos, firma um pacto comigo para que eu nunca o esquecesse. E enquanto estou assim distraída, me lembrando de outros Faustinos do passado, nem reajo quando percebo que estou me tornando refém da alegria de simpáticos piratas e fantasmas...
E as cenas continuam passando na minha cabeça, como se brigassem para não serem esquecidas. Lá estou eu, agora, numa sala toda enfeitada de véus, dizendo "sim" a um bando de alunos de olhos tristes, que me pedem fidelidade na alegria e na tristeza, nas vitórias e nas derrotas. Assumi essa proposta de casamento inusitada e sofri com eles as mesmas dores.
Alunos e amores, sempre amáveis e amados, me cativando a cada ato. Uns doces, outros amargos, uns espontâneos, outros, contidos, uns tão próximos, outros tão distantes. Através deles, descobri que a sala de aula nada mais é do que um palco por onde desfilam todos aqueles personagens que nos chegam do acaso para nos ensinar que nada acontece por acaso. Deus lhes pague por tantos momentos especiais...
Outros espetáculos foram se sucedendo ao primeiro, necessitando de que mais e mais roteiros fossem sendo escritos. Agora eu brincava de autor, inventando as cenas, misturando os personagens que não se misturavam, dando a cada um papel importante na história de minha vida. E fui me deixando contagiar pela espontaneidade daqueles atores cujo traço principal era a alegria de viver.
Um dia, porém, quando a cortina se abriu, estranhei os personagens que ali estavam. Não haviam sido criados por mim. E sem eu entender como, eles encenaram na minha frente os papéis mais difíceis de qualquer ator. Foram heróis silenciosos de uma história misteriosa que arrancou lágrimas de toda a plateia que assistia, atônita, àquele horrendo desenrolar de fatos. Percebi que aqueles meninos barulhentos eram capazes de muito mais. Haviam se tornado gigantescos perante meus olhos, na coragem, na amizade, na sinceridade dos sentimentos, na solidariedade. A vida lhes pregara uma peça e dela eles saíam com o primeiro prêmio.
Acontece algo de muito estranho com os personagens, depois que uma história chega ao fim. Ou eles criam vida e passam a ser personagens vivos de outras histórias ou se tornam, para sempre, escravos das lembranças de quem os criou. Cabe tão somente ao autor decidir o destino que terá os seus personagens. Se os deixa presos como fotografias dentro de um álbum, até ficarem desbotados pelo tempo ou se abre mão deles e deixa-os partir, em busca de novas histórias.
Absorta em meus pensamentos, nem percebi que o espetáculo tinha acabado. Olho em volta e vejo que estou só na plateia. No palco, os atores se despedem uns dos outros. Tiram a roupa de alunos, escolhem alguns trajes de adultos e, envergando um olhar firme de quem não sente medo, preparam-se para viver, em outros palcos, novas aventuras...
Sinto vontade de dizer-Ihes tantas coisas, mas calo-me diante de minha inevitável impotência. Cabe a mim a decisão. Acaricio com o olhar cada um daqueles personagens que já não me pertencem, revivo cada um dos grandes espetáculos que vivemos juntos e, lentamente, vou libertando-os do meu álbum de lembranças. Não os quero presos, desbotados pelas minhas lágrimas. É tempo de escrever outra história. Uma história que começa sempre com tempo certo pra acabar.
Adeus, meus alunos-personagens que durante dois anos me emprestaram a alegria e me ensinaram, num dos capítulos mais tristes dessa história, que a vida não morre. Assim é a vida, assim são todos os espetáculos da vida: cheios de luz, de magia, de emoção.
E como na vida, alguém se aproxima de mim para dizer que é preciso apagar as luzes e fechar o teatro. E quando tudo parece silenciar, faço sinal para que se fechem, também, as cortinas das minhas lembranças... (Dez / 2003 – Aula da saudade dos 3ºs anos)
-------------------------------------------------------------------------------- Escrevi esse texto em 2003 e assim me despedi dos alunos que foram 'meus' durante os anos de 2002 (2ºs anos) e 2003 (3ºs anos). Juntos, vivemos momentos inesquecíveis, rimos das mesmas alegrias, sofremos das mesmas dores... Cem anos eu viva e jamais vou esquecer a expressão de desamparo, estampada nos rostos daqueles adolescentes, quando entrei na sala de aula pela primeira vez, depois daquele terrível acidente de ônibus em que morreram 7 pessoas do colégio... Não consegui dar aula. E em silêncio, chorei com eles...
Hoje trago esse texto de volta para me despedir, particularmente, de uma das alunas dessa turma que era só alegria e que também partiu bruscamente, há pouco mais de uma semana... Quase 12 anos depois, revi de novo a mesma expressão de desamparo estampada nos rostos de vários colegas presentes na igreja, que não conseguiam responder àquela mesma pergunta que não tem resposta: "Por quê"? Como também não sei responder, ofereço-lhes, mais uma vez, o meu silêncio e as minhas lágrimas...
(Lilian Rocha - 12.04.15)

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