DA MINHA JANELA
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 3 min de leitura
Quando voltamos de Recife, nosso apartamento estava alugado. Tentamos negociar com o inquilino, pedindo de volta o apartamento, pois não tínhamos onde morar aqui, mas ele se mostrou irredutível. Pediu mais 6 meses. E quando meu marido disse que entraria na justiça contra ele, ele simplesmente levantou os ombros e disse: “Pode entrar.” Entramos e perdemos. A justiça concedeu a ele o tempo exato que ele nos havia pedido. E de quebra, nos devolveu o apartamento com o piso todo destruído. Tivemos que trocar tudo, inclusive o dos banheiros. E enquanto esperávamos, ficamos morando num pequeno apartamento que meu pai tinha, próximo ao Parque.
Era um apartamento de quarto e sala, muito bem dividido. Ficava no 12º andar. Deixamos a maior parte dos nossos móveis num depósito e nos mudamos para lá, junto com nosso primeiro filho, que tinha apenas 7 meses. Foi lá que Felipe aprendeu a engatinhar. Eu fechava a porta do banheiro e ele reinava livre no pedacinho de chão que correspondia ao quarto e à sala. Como era tudo pequenininho, da cozinha eu o acompanhava. Creio que ele também achava uma maravilha, pois mal ele dava uma voltinha pela sala, logo me encontrava na cozinha e se agarrava, feliz, nas minhas pernas.. Fomos muito felizes ali. Ali eu fiquei grávida de Júlia e de lá saí direto para a maternidade. Com o coração apertado de saudade daquele cantinho, mas muito ansiosa também para entrar, finalmente, no nosso apartamento.
E foi em abril, quando Júlia completou um mês, que nós viemos morar aqui. Achei tudo enorme. Mas o que mais me encantou foi a vista! A Avenida Beira Mar ainda era linda e dava pra ver o rio em toda a sua extensão. O Cotinguiba ainda era um clube movimentado, especialmente às sextas e aos domingos à noite. Nossa padaria era a Delícia, a farmácia da moda ainda era a Galeno, o Iate ainda tinha boite, o restaurante Renatão ainda se chamava Crase e o enorme casarão dos Rollemberg ainda nem sonhava em ser a sede da OAB. Tivemos varanda, tiramos a varanda. Tivemos grade nas janelas e depois deixamos de ter. Vi vizinhos saindo e vizinhos chegando. Vi síndicos preocupados, porteiros dedicados. Vi crianças crescendo e se tornando pais e mães.
Da nossa janela, vimos o calçadão da 13 nascer, o mangue crescer, o Pré-caju surgir e até um cortejo fúnebre passar. E durante muitos dezembros, tivemos o privilégio de ver, da nossa cama, a pontinha de uma enorme e linda árvore de luzes, que se erguia bem no meio do rio...
E enquanto as mudanças ocorriam lá embaixo, aqui em cima eu travava uma batalha quase diária, atrás de mais espaço, para acomodar meus 5 filhos, com todas as suas roupas, pares de sapatos, livros e brinquedos. O apartamento, antes tão grande, agora me parecia terrivelmente apertado... Não foram poucas as vezes em que fiquei debruçada na janela, de madrugada, assistindo ao monótono passar dos carros, enquanto esperava, aflita, o filho que ainda faltava chegar em casa...
Muitas foram as transformações a que assistimos da nossa janela, durante esses 30 anos que moramos aqui. A famosa CD Club, que durante tantos anos foi tão frequentada, hoje virou um depósito de bebidas, feio e sem graça. A lojinha de doces e biscoitos, chamada ‘Coisas Nossas”, que funcionava nos fundos de uma casa, quase vizinha ao nosso prédio, prosperou, ganhou uma sede própria, e daqui da janela já não dá mais pra vermos os enormes e fumegantes tachos de doces descansando no fogão...
Meus filhos também cresceram e ganharam asas enormes. Estão sempre viajando ou em casas de amigos. Hoje sobram camas, armários e lugares à mesa...
Minha janela, hoje, tornou-se cúmplice silenciosa da minha solidão. Com ela, divido minhas lembranças e minhas saudades, enquanto rezo pela felicidade dos meus filhos. A cidade mudou, cresceu. Muitas casas foram derrubadas, muitos prédios construídos. Mas daqui ainda consigo avistar o rio, correndo sereno, indiferente a todas essas transformações, como se quisesse me dizer que ‘tudo passa’. Sim, tudo passa. Menos a história que construímos aqui, nesse pequeno paraíso a que chamamos “lar”...
(Lilian Rocha - 12.3.16)
(Foto: Gustavo Rocha, meu filho)

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