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ENCONTRO MARCADO

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 5 min de leitura

O ano era 78. E na mesa da pequena lanchonete em Brasília, cinco pessoas, tentando escolher um assunto que fosse de interesse comum. Mas não tinha uma só conversa que eu não cortasse pelo meio pra repetir a mesma frase: “Que estranho a gente aqui!”

E era estranho mesmo, primeiro pelo grupo que ali estava. Dois deles, Pedro e Zé Luiz, eram meus amigos de Salvador que estavam ali a passeio; minha prima Anya, com quem eu estava morando em Brasília, não conhecia ninguém da mesa, além de mim; a quinta personagem era uma namorada de férias que Pedro havia arranjado por lá, também estranha aos demais. Portanto, não havia jeito de encontrarmos um assunto em comum. Em compensação, eu estava feliz por estar ali com Pedro e Zé, por mais estranho que parecesse aquele encontro. Pra mim, era como se alguém tivesse arrancado dois personagens de uma história e os tivesse jogado em outra. De tanto eu expressar o meu estranhamento, Zé Luiz disse: - Então, pra ficar ainda mais estranho, daqui a 20 anos a gente se encontra em Manaus... - Ah, não, Zé, Manaus é muito longe! Além disso, ninguém ia se lembrar de ir a um encontro daqui a 20 anos! – respondi. - E por que não? Eu tenho um encontro pra daqui a 8 anos e ainda estou lembrado. Ao ouvir aquilo, meus olhos se arregalaram! Queria saber de todos os detalhes...

Ele então explicou que 7 anos antes, uma professora tinha mandado a turma dele ler “O Encontro Marcado”, que consagrou para sempre o escritor Fernando Sabino. Nesse romance, o personagem vivido pelo escritor combina com dois colegas, de se reencontrarem 15 anos depois. Cada um, então, segue seu caminho e ao final do prazo, somente ele comparece ao encontro marcado. - Por isso que eu e mais dois colegas resolvemos marcar um encontro... – concluiu Zé. Completamente fascinada por aquela história, nem perdi tempo: - Vamos marcar um encontro também? Só que em vez de 15 anos, a gente muda pra 10... Claro que todo mundo topou. E o resto da tarde, ficamos imaginando como seria o nosso encontro, e principalmente, como estaríamos depois de 10 anos, como se 10 anos fosse o fim do mundo...

Escrevemos num papel todas as cláusulas do nosso acordo. O encontro seria em Salvador, pois era meio caminho pra todo mundo. O local? Depois de muita discussão, optamos pela escadaria do Teatro Castro Alves, porque se tivesse uma guerra nesses dez anos, pelo menos a escadaria haveria de sobreviver à destruição! Quanto ao horário, escolhemos 10 da manhã, pra gente poder passar o resto do dia juntos... Combinamos também que teríamos que comparecer ao encontro sozinhos, sem marido, mulher ou filhos. E ninguém poderia faltar ao encontro. Só em caso de morte! Ao final, assinamos todos e eu fiquei encarregada de tirar uma xerox do documento e mandar pra cada um. E nada de ficar lembrando um ao outro o nosso compromisso. Cada um tinha que se lembrar e pronto! Era o dia 8 de agosto de 1978. E dez anos depois, seria exatamente o dia 8.8.88. Portanto, quem haveria de esquecer uma data como aquela?

E o tempo foi passando... Voltei para Aracaju, me formei e voltei a trabalhar. Em 83, casei e fui morar em Recife. E tratei logo de avisar ao meu marido pra não ter confusão: “Daqui a 5 anos, no dia 8.8.88, eu tenho um encontro em Salvador MUITO importante que eu não posso faltar de jeito nenhum! Mas você não pode ir comigo, porque cada um só pode ir sozinho.”

No final desse mesmo ano, recebi uma notícia que me tirou do ar: meu amigo Zé Luiz tinha morrido bruscamente, num acidente de carro. Naquele dia, pela primeira vez em 5 anos, duvidei do nosso encontro. Eu havia perdido a única pessoa que eu tinha certeza de que iria. Tive raiva da morte e maldisse a vida que não fora capaz de vencê-la... Mas o tempo é sábio e capaz de fazer florescer em nós os mesmos sonhos de antes... Em agosto de 84, minha barriga estava enorme e meu primeiro filho prestes a nascer... Em agosto de 86, eu já tinha dois filhos... Em agosto de 87, estava esperando o terceiro...

E finalmente chegou o meu agosto mais esperado... Como o dia 8 caiu numa segunda-feira, meu marido teve que perder um dia de trabalho só pra me levar a Salvador, mesmo achando aquela história toda uma grande bobagem... A essa altura, todos os meus parentes de Salvador já sabiam desse encontro e estavam ansiosos pelo desfecho! Só Márcia, minha cunhada, se mostrou solidária à minha esperança e se ofereceu para ir comigo. Ficaria de longe, observando, e se ninguém aparecesse, ela se aproximaria, fingindo que era ela quem eu estava esperando...

Na hora marcada, lá estava eu subindo a escadaria, fingindo a maior naturalidade, como se fosse um hábito meu frequentar a escadaria do Teatro Castro Alves toda segunda-feira... Dentro do carro, do outro lado da rua, lá estavam meu marido e meus filhos, assistindo de camarote ao espetáculo do ano... Deu 10 e 10h e ninguém apareceu. Continuei olhando os cartazes das peças, pra disfarçar o nervosismo. Olhei o relógio de novo. 10 e 20. E nada. Só gente apressada, passando de um lado para o outro, absorta em seus pensamentos... Às 10 e 25, disse pra mim mesma que só ia esperar até as 10 e meia. Mas 10 e meia chegou, me deixando ainda mais solitária ali em cima. Baixei a cabeça, envergonhada, e comecei a descer as escadas, lentamente, imaginando as gozações que ia ter que aguentar...

Quando voltei para a casa de minha tia, peguei o catálogo e me pus a procurar, pacientemente, o telefone de Pedro. Eu havia perdido o contato com todo mundo e não tinha a menor noção de onde encontrá-lo. Nesse tempo, sem celulares nem internet, tive que dar mais de 10 telefonemas, até finalmente reconhecer a voz dele do outro lado da linha. - Oi, Pedro, tudo bem? Sabe que dia é hoje? - Sim, dia 8. Quem está falando? - De que mês, Pedro? - De agosto. Quem está falando? - De que ano, Pedro? - De 88... 8 de 8 de 88...Lilian!!!! VOCÊ FOI?! - Fui, claro! Eu não disse que iria?

Depois fiz a mesma coisa com minha prima, que por esse tempo estava morando em Salvador e me disse que tinha passado em frente ao teatro às 8h! Mas é claro, também não se lembrou... Coube a mim sentir a mesma frustração e o mesmo vazio que Fernando Sabino também sentiu um dia. Como ele, também acreditei ser possível fazer parar o tempo e reencontrar as mesmas pessoas que deixei lá atrás. Pura fantasia de uma cabeça que insiste em viver nas nuvens... E enquanto todos se divertiam com aquela história maluca, só eu permanecia inconformada com aquele desfecho. No fundo, eu sempre soube que ninguém ia se lembrar, mas se eu lembrava, por que haveria eu de faltar àquele encontro?

Foi então que meu marido, na tentativa de me alegrar, teve uma ideia: por que você não tenta reunir sua família toda e fazer um encontro? A ideia foi criando corpo e em julho de 90, conseguimos reunir os 90 integrantes da família de minha mãe no primeiro Encontro de Família, que veio a se chamar “Os 90 em 90”. A esse, se somaram mais 10 encontros. Hoje já somos mais de 130 integrantes, distribuídos entre 4 gerações. Uma experiência maravilhosa e inesquecível que nasceu de uma experiência frustrante e solitária.

Termino este meu singelo ‘Encontro Marcado’, pedindo emprestado a Fernando os mesmos versos com que ele imortalizou o dele:

“De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”

(Lilian Rocha - 19.07.14)


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