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ENTRE O MEDO E A CORAGEM

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 4 min de leitura

Durante muito tempo da minha vida, atribuí o significado de ‘coragem’ àquelas imagens de domadores destemidos, ou aos príncipes encantados dos livros da minha infância, que enfrentavam bruxas, dragões e serpentes para salvar a princesa que vivia trancafiada na torre mais alta do castelo...

‘Medroso’, para mim, era todo aquele que tinha pavor de injeção, que ficava tonto ao entrar num hospital ou que desmaiava quando via sangue...

Eu tinha dois irmãos que eram exatamente assim: ‘medrosos’. O mais velho, Ricardo, era como meu pai, tinha pavor de hospital. Quando fui operada do joelho, em Brasília, Ricardo foi até lá me visitar, mas todas as vezes que entrava no hospital, ele passava mal. Ficava deitado na cama auxiliar que ficava ao lado da minha, completamente tonto, impregnado com um cheiro de éter que nem existia de verdade... Era um visitante que dava mais trabalho aos médicos do que o próprio paciente...

O outro medroso da família era meu irmão Petrônio. Esse não podia ver sangue, pois desmaiava na hora. Por isso, ninguém deu muito crédito a ele quando ele disse que queria fazer Medicina. E mais: queria ser um neurocirurgião! Ele só podia estar brincando! Mas superando todas as nossas expectativas, Petrônio cumpriu o que disse. Passou no vestibular e começou a estudar Medicina.

Nesse tempo, Petrônio tinha um grande amigo chamado Chico, que morava em frente a nossa casa. Os dois eram grandes companheiros. Um dia, porém, Chico foi vítima de um acidente de moto que lhe deixou paralisado todo um lado do corpo. Um dos braços ficou ‘esquecido’, sem movimento, e isso mexeu profundamente com seu espírito. Ele começou a se isolar das pessoas, talvez na esperança de processar melhor o que lhe tinha acontecido, mas não teve muito êxito. Uma tarde, ele esperou que todos saíssem de casa e em silêncio e sem nenhuma explicação, deu fim à própria vida.

O impacto dessa notícia logo se espalhou pela vizinhança, deixando atônitos todos os que o conheciam. Ele era muito jovem, tinha pouco mais de 20 anos. “Exatamente da idade de Petrônio”, pensamos. Imediatamente ficamos preocupados com ele, imaginando de que maneira ele ia reagir. Mas Petrônio recebeu a notícia de pé, firme. Sem derramar uma lágrima, ele pegou sua maletinha de estudante de medicina, atravessou a rua e subiu até o quarto de Chico. E com uma presteza que nem ele mesmo soube explicar, fez os procedimentos necessários no corpo do amigo. Em seguida, atravessou a rua de volta, entrou em casa, largou a maleta e desmaiou.

Nesse dia, Petrônio perdeu o medo. Nascia ali, naquele momento, aquele que viria a ser, poucos anos mais tarde, o grande neurocirurgião Petrônio Andrade Gomes... E a partir daquele dia, meu conceito de coragem também foi se modificando...

Alguns anos mais tarde, foi a vez de Ricardo me provar o que era “coragem”. Quando ele recebeu o diagnóstico de câncer na garganta, ele escreveu na agenda: ‘Preciso parar de fumar’. E no dia seguinte, ele abandonou o vício de 40 anos e passou a marcar na agenda, diariamente, quantos dias estava sem fumar. Depois do cigarro, o câncer tirou dele o prazer de se alimentar pela boca. Durante um ano, Ricardo se alimentou por meio de uma sonda na barriga... E lá na agenda, tudo cuidadosamente anotado: tantos dias sem fumar, tantos sem beber, tantos com sonda...

Depois vieram as aplicações de radioterapia, de quimioterapia, as várias internações, as infecções, a traqueostomia... Tudo anotado, tudo contado. Cada dia para ele representava uma luta e uma vitória. O câncer foi arrancando tudo dele: o cigarro, a bebida, os dentes, a possibilidade de comer, de beber água, de falar e até de respirar...

Só não lhe tirou a esperança. E para defendê-la, Ricardo se mostrou infinitamente mais corajoso do que todos os príncipes e domadores que povoaram a minha infância. Morreu lutando, sem reclamar de nada, dizendo ‘sim’ a cada instante que a vida lhe dizia ‘não’... E ao lado dele, cuidando dele até o fim, esteve Petrônio.

‘Coragem não é não ter medo’, disse-me meu pai uma vez, ‘é enfrentar o medo’. Medo todo mundo tem. Em parte, é uma defesa do organismo para que não nos arrisquemos sem necessidade. Por isso, temos medo de escuro, de altura, de mar revolto, de doença, de morte. No fundo, tudo isso representa o ‘desconhecido’ e diante do desconhecido, a maioria dos corajosos prefere recuar, porque o desconhecido nada mais é que um ‘convite do destino’ a sairmos da nossa zona de conforto, a experimentarmos a cruz, a sermos coerentes com nós mesmos e com aquilo em que sempre acreditamos e defendemos. E é exatamente por isso que não é fácil.

Quando Petrônio assumiu a Presidência da SOMESE, em 2008, nem ele mesmo imaginava a batalha que ia enfrentar. Foram seis anos defendendo, como ninguém, a classe médica, lutando por melhores condições de saúde, se expondo, corajosamente, em nome de uma ideologia. Ontem, ao se despedir da Somese, me emocionei novamente com seu discurso firme e corajoso e principalmente pela maneira sincera com ele foi homenageado pelos funcionários.

Coragem, portanto, não é enfiar a cabeça dentro da boca de um leão, não é andar na corda bamba sobre as cataratas, não é saltar de um trapézio sem rede embaixo. Deus não quer que arrisquemos nossa vida para mostrarmos o quanto somos ‘corajosos’. Não é ESSE tipo de coragem que Ele quer de nós. Mas Ele espera que sejamos corajosos o suficiente para aceitarmos a cruz de cada dia. Ele espera que não recuemos diante do desafio, do sofrimento, da verdade, da justiça, da ética.

Coragem é enfrentar o medo de sangue e costurar o corpo de um amigo morto. É nunca perder a esperança na vida, mesmo quando a vida já lhe roubou tudo. Coragem é ‘provar’ que se ama, é permanecer junto, é proteger, cuidar, defender, é assumir riscos por aquilo em que se acredita, ainda que esses riscos lhe custem a própria vida...

É dessa coragem que quero continuar me alimentando. Da firmeza de Petrônio, para que eu saiba suturar meus pedaços feridos; da resignação de Ricardo, para que eu saiba aceitar cada 'não' que a vida me der; da coerência de meu pai, para que eu nunca recue diante do que um dia me dispus a assumir e da serenidade de minha mãe, para que eu seja sempre capaz de afastar todas as aflições que às vezes buscam abrigo no meu coração... Parabéns, Petrônio! Sinto um orgulho imenso de ser sua irmã!

(Lilian Rocha - 23.10.14)


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