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MEU ANJO DA GUARDA

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 5 min de leitura

Ainda me lembro quando aquele rapaz entrou pra vender um plano de saúde. Era fevereiro de 1990. Eu trabalhava no Conselho de Educação, já tinha 3 filhos, tinha cancelado meu antigo plano de saúde e, portanto, estava completamente vulnerável. Resolvi, então, me credenciar, pois como o período de carência para partos era de 10 meses, se eu engravidasse novamente, pelo menos eu estaria coberta, o plano pagaria tudo.

No mês seguinte, fiquei grávida de novo. Imediatamente, fiz as contas e descobri que o bebê nasceria, aproximadamente, uma semana antes de terminar a carência. E agora? Eu não tinha dinheiro para pagar um parto particular que, naquela época, chegava em torno de 240 “qualquer coisa” (não sei mais qual era o nome do dinheiro usado, nem o valor a que ele corresponde hoje). E tudo por causa de uma semana apenas! Quanto mais eu pensava nisso, mais aflita eu ficava. E os meses foram se passando...

Foi quando uma colega do Conselho me deu uma ideia: “por que você não pede a alguém pra fazer uma carta ao presidente desse plano de saúde, pedindo pra eles reconsiderarem o período de carência?” Gostei tanto da ideia que pedi à conselheira Regina Helena Lucena que redigisse a tal carta. Além de escrever superbem, ela era procuradora do Estado, entendia de leis, sabia argumentar. E de fato, ela redigiu uma carta tão lindamente embasada, que se fosse eu a presidente daquele plano de saúde, teria deferido o pedido imediatamente. Acontece que eu não era presidente e o tal presidente fez o que qualquer um teria feito: negou o pedido. Entrei em pânico. Agora eu teria que inventar algum jeito de aumentar minha renda pra pagar o parto.

E eu inventei. Inventei de fazer um barzinho no salão de festas do condomínio onde tínhamos uma casa de praia. Já havia um espaço pra isso, só que ninguém nunca havia se habilitado. Arregacei as mangas, comprei um fogãozinho de duas bocas, arranjei um expositor para salgadinhos, umas mesas e cadeiras, transformei uma mesinha com gaveta numa caixa registradora, mandei fazer uma placa com o nome do barzinho e no fim de semana seguinte, inaugurei o meu barzinho. Chamava-se“Bom Apetite”. Funcionaria somente aos fins de semana e só para os condôminos. Todo mundo adorou a ideia!

Às sextas, depois de um dia inteiro de trabalho, eu e meu marido pegávamos as 3 crianças, enchíamos o carro de mantimentos, engradados de cerveja e refrigerante e seguíamos para a casa de praia. Assim que eu chegava, já me punha a preparar os tira-gostos para o dia seguinte, enquanto Austeclino se encarregava de colocar as bebidas pra gelar. No sábado, enquanto todos se divertiam na piscina, lá estava eu, com a barriga enorme encostada no fogão, fritando salgadinhos. E os pedidos não paravam: uma cerveja aqui, dois bobós ali, uma porção de batatinhas fritas acolá... E quanto mais choviam pedidos, mais aflita eu ficava na cozinha: ou era o kibe que tinha se esfarelado na panela, porque o óleo não estava suficientemente quente, ou a cerveja que não estava bem gelada, ou o gás que começava a dar sinais de que ia acabar, enfim...

Como se não bastasse o barzinho, achei que podia incrementar mais o espaço colocando algumas revistas pra vender! E por que não? Alguém, então, me emprestou um expositor grande e lá fui eu na Distribuidora Abril, atrás de revistas para vender. A distribuidora atendia aos donos das bancas só as sextas-feiras e por isso, a fila de gente disputando revistas era sempre enorme. Por isso, se eu quisesse conseguir determinadas revistas, eu tinha que passar lá mais cedo, antes de ir para o trabalho. Daí a gente mostrava as revistas que não tinha vendido e podia substituí-las por outras, desde que as capas estivessem intactas. Até hoje eu não sei o que dava mais trabalho, se o meu barzinho ou se a minha minibanca de revistas...

Enquanto isso, a minha situação financeira não progredia. A grande maioria dos meus “fregueses” comprava fiado pra pagar no final do mês, mas toda semana eu tinha que investir em comidas, bebidas e revistas.Ou seja, eu não tinha saído do lugar!

Em meados de novembro, com oito meses de gravidez, entreguei os pontos. Tudo em mim doía: as pernas, os pés, a coluna. E eu continuava tão pobre quanto antes. Desanimada, fechei o barzinho, para tristeza de todos (e meu alívio!) e fiz o que sempre costumo fazer quando as forças me faltam: deito-me de costas, fecho os olhos e deixo-me boiar, totalmente entregue à vontade de Deus. É exatamente nessas horas que chegam os anjos, embora nem sempre a gente seja capaz de reconhecê-los...

Era um sábado à tarde de dezembro e eu estava fazendo as unhas num minúsculo salão de beleza, quando um homem entrou e se aproximou de mim para me vender um plano de saúde, o mesmo que eu já tinha feito. Na mesma hora, enxotei-o da minha frente, pois nem podia ouvir falar desse assunto. Mas ele insistiu. Anjo que é anjo sempre insiste, pois ele sabe que a gente nem desconfia de que ele é um anjo. Anjo que é anjo também tem paciência. E ele teve comigo. Ouviu em silêncio todos os desaforos que falei acerca de planos de saúde e, muito educadamente, (anjos são sempre educados!) disse que podia me ajudar. Franzi a testa, desconfiada, e deixei que o coitado falasse. Ele então explicou que os usuários de planos de saúde também tinham direito ao valor estipulado por uma certa “tabela da AMB”, era só negociar. Depois disso, ele saiu do salão do mesmo jeito que entrou, sem deixar rastros. Hoje tenho certeza de que ele tinha asas...

Na segunda-feira, fui tirar aquela história a limpo e descobri, estupefata, que ele estava certo. De 240, o parto caía para 160 e esse valor ainda podia ser pago em duas vezes. E esses 80, eu possuía! Menos de uma semana depois, meu filho Gustavo nasceu e nós pagamos os 80 iniciais. Um mês depois, esperamos chegar a cobrança dos outros 80 restantes, mas não chegou. Nem tampouco no mês seguinte. Em março, assistimos a posse do novo presidente e a revolução que ele causou com a instituição do “plano Collor”. Muitas empresas fecharam as portas para se ajustarem aos novos valores, dentre elas, a do meu plano de saúde. Nesse mês, também não veio a cobrança.

Em abril, recebi um telefonema de lá, pedindo-me para comparecer com urgência, pois se tratava de um assunto do meu interesse. Engoli em seco e me preparei para pagar o que restava, com juros e correção... Ao chegar lá, o rapaz do caixa olhou meus documentos com atenção e, em seguida, me entregou um cheque, me restituindo 40. Agradeci, guardei o cheque e saí, tentando compreender o que não tinha explicação: o parto, que a princípio era 240, me custara apenas 40! Lembrei imediatamente do meu anjo e nunca mais duvidei da existência deles. Eles estão sempre por perto, prontos para me dar uma mãozinha quando preciso. Nem sempre têm asas, nem sempre vendem planos de saúde, mas hoje sou capaz de reconhecê-los, mesmo por debaixo do melhor disfarce.

Vinte e cinco anos se passaram depois disso. Gustavo hoje é um homem feito, o bar não mais existe e só a cópia da carta que Regina fez permanece entre meus guardados. Mas a cada aniversário de Gustavo, eu me lembro disso. Das coisas que fui capaz de fazer para recebê-lo e do milagre que cercou o seu nascimento.

Mas tudo valeu a pena, Guga, e se fosse preciso, eu faria tudo de novo. Pois tudo parece pequeno e insignificante diante do seu sorriso e da imensa saudade que sinto hoje do seu abraço... Te amo!

(Lilian Rocha - 18.12.15)


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