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MEU TOMATINHO

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 5 min de leitura

Diferente da grande maioria das pessoas, eu não aprendi a dirigir aos 18 anos. Comecei bem mais tarde, aos 25. E assim que terminei o curso de autoescola, me casei e fui morar em Recife, antes mesmo de tirar a carteira. E porque eu não tinha carteira, eu não dirigia, apesar da insistência de meu marido, que não se conformava com a minha falta de coragem...

Morávamos em Boa Viagem, num apartamento muito bem localizado, entre a praia e o shopping de Recife, recém-construído. Meu marido saía cedo para trabalhar com o carro da empresa e o outro ficava na garagem, quietinho, esperando pelo fim de semana. Um dia, resolvi tomar coragem e dirigir. O percurso seria bem pequeno, apenas 300m, de casa até o shopping. Não havia movimento por aquelas ruas e, portanto, não haveria perigo de algum guarda me parar. Ademais, o estacionamento do shopping era enorme e fácil de estacionar. Nem precisava fazer baliza... Assim, avisei a meu marido e pedi que ele rezasse por mim até eu voltar pra casa. Mas foi um sucesso. Consegui fazer tudo certinho. Tirei o carro da garagem, dirigi até o shopping e voltei pra casa, sã e salva. Meu marido ficou orgulhoso e me estimulou ainda mais. E eu passei a dirigir quase todos os dias. Fazia supermercado, ia à farmácia, comprava coisas para o bebê, mas tudo no shopping, claro! Não me atrevia a dirigir fora dali!

Certa vez, quando voltava do shopping, percebi que uma rua estava interditada e para eu chegar até minha casa não havia outra maneira a não ser pela Domingos Ferreira, uma rua supermovimentada, de tráfego intenso. Entrei em pânico. Eram 18h, horário em que todo mundo enlouquece, querendo voltar pra casa. Ou eu enfrentava a Domingos Ferreira, rezando pra não morrer, ou ficava ali pra sempre, dentro do carro, esperando a morte chegar. Preferi enfrentar. Afinal, eu era ou não era uma mulher independente? Rezei uma ave-maria e lá fui eu, rumo à minha prova de fogo! Mas graças a Deus, deu tudo certo e eu cheguei em casa completamente orgulhosa da minha façanha! A partir daí, perdi o medo e fui ousando, cada vez mais. Mas só dirigia por Boa Viagem e no máximo até Piedade, o bairro seguinte.

Certa manhã, quando vinha voltando da aula de natação de Felipe que ficava em Piedade, um guarda apitou para mim. Fiquei apavorada, pois não tinha carteira e meu primeiro impulso foi acelerar ainda mais, pra fugir dele. Ele, então, pegou a moto e veio atrás de mim. Assim que me alcançou, perguntou: - A senhora não ouviu o apito? - Desculpe, moço, não ouvi. – respondi, com o coração saindo pela boca. E antes que ele pedisse o documento que eu não tinha, disparei a falar sem parar, emendando uma desculpa na outra: - Moço, me desculpe, eu estou aflita... Meu filho tá com febre alta, ele é um bebê, estou indo agora ao médico, não sei o que ele tem, pelo amor de Deus, me deixe ir, eu tô com pressa... Ele, então, olhou para dentro do carro e depois de constatar que havia mesmo um bebê no colo da empregada, se compadeceu e disse: - Tá bem, mas da próxima vez que ouvir um apito, pare, tá? Saúde para o seu bebê! Que santo guarda! Até hoje não entendi como consegui escapar!

Um mês depois, voltamos a morar em Aracaju. E eu tratei de tirar a carteira. Passamos a ter dois carros, sempre. Mas o meu era sempre o menor e o mais simples, pois eu tinha medo de dirigir carro grande. Só que eu queria ter o “meu” carro, escolhido e comprado por mim.

E foi num 19 de janeiro que ele nasceu. Era meio-dia, eu tinha acabado de sair da escola e estava morrendo de calor, dentro de um fusca ridículo e desconfortável pelo qual meu marido, num ataque súbito de saudosismo, havia se apaixonado e comprado. Eu não entendo nada de automóveis, muito menos de marcas. Minha única exigência é que ele tivesse tudo o que um fusca não tinha: linhas arredondadas e modernas, 4 portas, ar-condicionado, vidro elétrico, direção hidráulica e trava elétrica. Fomos, então, dar uma olhada em alguns carros populares. Na primeira concessionária que chegamos, um rapaz me mostrou um Pálio vermelho, novinho, todo redondinho! Parecia um tomatinho! Assim que entrei nele, não tive mais dúvidas. Era aquele carro que eu queria. Meu marido ainda quis me mostrar outros, mas em vão. Comprei um carro em pouco menos de meia hora, como quem compra pão. E saí aborrecida, porque não pude sair de lá com ele. Faltava emplacar e não sei mais o quê...

E enquanto meu marido cuidava da documentação, eu cuidava dos presentes para o meu “recém-nascido”. Comprei uma flanela e um pente vermelhos pra combinar com ele, um santinho com ímã pra me proteger, um enfeite para o retrovisor e mais uma porção de bobagens. E junto com o meu “Tomatinho”, virei a motorista mais feliz do mundo! Em 1998, quando ele completou um ano, comprei um pequeno arranjo de flores e o prendi na antena. Em seguida, mandei fazer um bolo de chocolate e junto com meus filhos, cantamos parabéns pra ele...

Durante 3 anos, fomos muito felizes, eu e ele, apesar das minhas inúmeras barbeiragens que me renderam algumas multas. Até que, em 2000, tive um corte grande no meu salário e minha vida virou de cabeça pra baixo. Tirei meus filhos do inglês e, pra conseguir pagar as dívidas, aceitei que meu marido vendesse meu carro, com a condição de que eu não soubesse nada a respeito da transação. Esse assunto me feria a alma...

Uma semana depois, eu estava almoçando quando meu marido entrou radiante, dizendo que tinha vendido meu carro e que logo que as coisas melhorassem, compraria outro pra mim. Em seguida, colocou ao meu lado tudo o que tinha sobrado dele: a flanela, o pente vermelho, o enfeite que ficava pendurado no retrovisor... Ao ver aquilo, senti um nó na garganta e saí da mesa em silêncio, com os olhos cheios d´água. Muito mais que um carro, eu havia perdido o meu companheiro.

A partir daquele dia, nunca mais quis outro carro e nunca mais dirigi. Há coisas que só acontecem uma vez na vida da gente e é bom que seja assim. Qualquer outro carro que eu tivesse seria só “um outro carro”. Sem alma, sem história. Como todos os carros do mundo. Aquele era único pra mim. Como a flor do Pequeno Príncipe: “Se alguém ama uma flor, da qual só exista um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso basta para fazê-lo feliz quando as contempla. Mas se um carneiro come a flor é, para ele, como se todas as estrelas repentinamente, se apagassem...”

(Lilian Rocha - 20.01.16)


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