MINHA VIZINHA
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Nossos primeiros vizinhos não foram bons. Morávamos no Conjunto dos Bancários, mais precisamente na rua onde hoje se ergue, na esquina, uma das lojas que eu mais frequento: o Shopping do Estudante, pois é também ali que meus livros são vendidos. E sempre que vou lá, arrisco um olhar furtivo para a nossa casa, onde passei minha infância. Ela ainda mantém quase todas as características, mas a rua e o bairro já nem parecem os mesmos.
Naquele tempo, não havia calçamento, as ruas eram todas de piçarra, mas em compensação, éramos livres. Não havia grades nas casas, as crianças brincavam nas casas umas das outras, pois todos os moradores se conheciam. Era comum, por exemplo, uma vizinha pedir emprestada uma xícara de açúcar na casa da outra e, em troca, emprestar um ou dois ovos. Invariavelmente, tudo o que se emprestava, voltava, sem que fosse necessário cobrar nada de ninguém. Havia amizade e, sobretudo, confiança. Mas não com nossos vizinhos mais próximos. Ali, a regra era outra e os valores bem diferentes dos nossos.
O nosso vizinho também trabalhava no Banco do Brasil, como todos os outros moradores. Morava com a mulher e, se não estou enganada, com mais 7 filhos. O mais velho regulava na idade com meu irmão mais velho, portanto, devia ter cerca de uns 15 anos. Levava a maior parte do seu tempo arquitetando planos de entrar na casa dos vizinhos para roubar. Isso mesmo, para roubar. E sua companheira inseparável de contravenções era justamente sua irmã mais velha, de 14 anos.
Como as casas do conjunto tinham a mesma estrutura física, não foi difícil para ele descobrir que, se dentro do banheiro da casa dele tinha um alçapão que dava para o telhado, na nossa também haveria de ter um alçapão semelhante, claro! Ele então esperava a gente sair de casa, subia no telhado, abria o alçapão e caía dentro do banheiro. Dali em diante, era o senhor de tudo. Comia bananas, roubava as bonecas da gente pra levar pra sua irmã e depois voltava pra casa, cinicamente, pelo mesmo lugar por onde tinha entrado. Isso aconteceu algumas vezes e minha mãe levou um tempo para entender o que estava acontecendo. Não conseguia explicar o "estranho fenômeno" de bonecas e bananas desaparecendo, se tinha fechado todas as portas e janelas. E mais: por que o banheiro estava sujo de areia, se ela o havia deixado limpo?
Até que um dia ela teve um estalo: alguém estava entrando pelo alçapão do banheiro e, para alcançar o chão, esse alguém apoiava o pé na maçaneta do banheiro e depois pulava para o chão. Isso explicava aquela areia misteriosa no banheiro. Ela então não teve mais dúvidas. Se armou de coragem, tocou a campainha da vizinha e, num rompante, explicou o que estava acontecendo lá em casa, inclusive o sumiço das bonecas de minha irmã. Da porta mesmo, a vizinha gritou pelos dois filhos e disse, com ar de enfado: "Vão buscar as bonecas que vocês pegaram na casa dela."
A partir desse dia, meu pai nos proibiu de ter qualquer contato com esses vizinhos, pois eles não prestavam. Vivíamos com medo, pois o pai dele só andava armado, a mãe não tinha controle nenhum sobre os filhos e os filhos não respeitavam ninguém. Todos os outros moradores tinham queixa dele. Até que finalmente nos mudamos dali. Mas ele continuou aprontando. Tornou-se ladrão profissional, foi preso e morreu, ainda jovem.
Para compensar tantos aborrecimentos, essa nova casa nos trouxe dois grandes vizinhos: de um lado, Sr.Horácio Goes e seus 7 filhos, de quem somos, até hoje, muito próximos; do outro, Zelito e Hortência Machado, um casal muito alegre e festeiro, sempre pronto a ajudar quem quer que seja. No lugar onde hoje se encontra o estacionamento da loja "Hortênsia Presentes", ficava a varanda da casa, onde as festas eram realizadas. Muitas vezes dormi embalada pelas belas canções dos Bee Gees, pois a janela do meu quarto dava exatamente para essa varandinha...
Quando casei e fui morar em Recife, tive como vizinha uma japonesinha doce e silenciosa, chamada Toyoko. Era também recém-casada e enquanto nossos maridos estavam trabalhando, a gente se visitava e, vez por outra, trocava receitas.
Quando voltamos para Aracaju, também fui bem servida de vizinhos. A primeira foi Ana Rita, uma das filhas de Horácio Gois. Era uma artista. Vivia costurando e bordando panos de pratos, toalhas e mais meio mundo de coisas. Morreu tragicamente, atropelada na Rua da Frente. Até hoje guardo um vestidinho de são joão que ela fez pra minha filha. Talvez para me lembrar dela. Depois de Ana Rita, tive mais 3. A última foi Lícia Violeta Martins, sempre perfumada e elegante. Todas as quintas, ela promovia o “Almoço da Vovó” e sua casa se enchia de netos. E do lado de cá da porta, eu ficava sonhando em ter, também, um dia assim.
Agora, há cerca de alguns meses, chegou minha nova vizinha. Chegou meio triste, como todos os que hoje são obrigados a trocar a casa por um apartamento, por questão de segurança. Por mais que tentem, a vida num apartamento é muito mais solitária. Faz falta o movimento da rua, os vizinhos, a vida lá fora. Sabendo disso, já tive vontade de chamá-la para um chá, pra tentar estreitar a nossa amizade, de modo que ela não se sinta tão só. Mas tudo não passou de planos. Não tive tempo para dedicar a ela um pouco do meu tempo.
Mas hoje ela tocou a nossa campainha. Veio nos trazer um pedaço de bolo. Imediatamente, lembrei da minha infância no Conjunto dos Bancários, onde isso era tão comum. Tínhamos todo o tempo do mundo para visitar os vizinhos, mas não tínhamos os vizinhos merecedores disso. Hoje, d. Bernadina veio me lembrar isso. Da importância que temos que dar ao tempo e do valor inestimável que tem um gesto como esse.
Muito obrigada, d. Bernadina, por ter repartido, tão carinhosamente, parte do seu tempo comigo. Tenho certeza de que seremos grandes amigas. E em seu nome, quero celebrar todos os grandes vizinhos que a vida me emprestou...
(Lilian Rocha - 18.10.15)

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