MINHAS MARIAS
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 5 min de leitura
A primeira chegou quando eu estava recém-casada, morando em Recife. Chamava-se Lúcia. Tínhamos quase a mesma idade e como ela não sabia fazer nada, fui eu quem lhe ensinou a cozinhar e a fazer minhas comidas preferidas. Ela dormia na nossa casa e como eu morava longe da minha família, ela se tornou minha companheira nas horas vagas. Foi ela quem acompanhou de perto toda a minha primeira gravidez, que viu o quartinho do bebê tomando forma, o armário se enchendo de roupinhas e que sentiu, junto comigo, todas as emoções e aflições de uma mãe de primeira viagem...
Quando Felipe completou 8 meses, resolvemos deixar Recife para trás e voltar para Aracaju. Foi muito difícil dizer adeus ao nosso apartamento, às minhas lembranças, aos amigos que fizemos e, principalmente, à Lúcia. Chorei muito. Ela também sentiu muito e preferiu se trancar no banheiro, com os olhos cheios de lágrimas, só para não nos ver saindo. É essa a última imagem que tenho dela. Nunca mais a vi e como nunca soube o seu sobrenome nem tampouco seu endereço, acabamos nos perdendo para sempre. Mas nunca a esqueci.
Depois de Lúcia, muitas outras passaram pela minha casa, muitas outras me ajudaram a criar meus filhos. Quando Victor, meu quinto filho, nasceu, resolvi passar os 4 meses de licença na casa de praia. Nessa ocasião, trabalhavam na nossa casa uma mãe e uma filha. A mãe cuidava da cozinha e da roupa, e a filha, da casa e das crianças. Só que a mãe fumava um cigarro de palha e tinha uma tosse assustadora. Combinei com ela, então, de que quando eu tivesse neném, eu lhe daria férias para que ela pudesse cuidar da saúde e sua filha ficaria comigo. E assim fizemos. Assim que me senti recuperada do parto, juntei as crianças e fomos para a casa de praia. Dormi feliz, sonhando com os 4 meses de tranquilidade que teria pela frente, longe de toda a confusão da cidade... Mas no dia seguinte, quando desci até a cozinha para preparar o café, encontrei sobre a mesa um bilhete que dizia: “D. Lilian, fiquei com saudade de minha mãe e fui embora. Me desculpe.” E agora? O que eu iria fazer ali sozinha, recém-parida, com 5 crianças, numa casa de andar e sem ninguém pra me ajudar? Nem pensei duas vezes. Arrumei tudo de volta e fui pedir guarida na casa de minha mãe... Foi então que minha cunhada trouxe um pouco de luz à minha escuridão. Ela tinha uma passadeira de roupas que queria um emprego fixo. Só que não sabia cozinhar. “Você quer?” Claro que eu quis!!
No dia seguinte, ela chegou. Com uma mão na frente e outra atrás, mas com uma vontade danada de trabalhar. E de passadeira, Jane rapidamente passou à condição de cozinheira de mão cheia, cativando, não só o estômago, mas o coração de todos nós. Jane tinha uma história de vida triste. Tinha sido abandonada pelo marido e estava morando de favor na casa de uma senhora, com seus dois filhos pequenos. Uma história relativamente comum, que a toda hora a gente ouve falar. Mas Jane estava longe de ser uma personagem comum. Não tardou para que ela desse a volta por cima e comprasse uma casa. E encontrasse outro marido que lhe deu mais um filho. Como ele era corretor, resolveu fazer negócio com a casa dela. Conseguiu vendê-la e comprou uma melhor. E tão rapidamente quanto veio, ele se foi. Tinha dado um golpe na praça e, por isso, precisou desaparecer da cidade. Não tardou para que ela descobrisse que a tal casa que ele tinha comprado não estava no nome dela e por isso, ela se viu só mais uma vez, sem marido, sem casa e dessa vez, com mais um filho. Sem outra alternativa, ela voltou a morar na casa daquela mesma senhora... Mas não por muito tempo. Logo, ela juntou dinheiro e conseguiu comprar um terreno. E junto com um irmão que era pedreiro, ela construiu sua casa. E arranjou outro namorado que era taxista e com quem ela foi muito feliz durante alguns anos. Até ele morrer de acidente. Tudo isso aconteceu durante os 15 anos em que ela trabalhou na nossa casa. Eu a vi cair e se levantar várias vezes. Mas nunca a vi caída por muito tempo. Jane era forte e corajosa e tinha uma capacidade fora do comum de dar a volta por cima. Durante 15 anos ela foi muito mais que uma empregada. Foi a mãe dos meus filhos na minha ausência. Um dia ela me comunicou que ia embora. Seus irmãos estavam morando em Camaçari e um deles havia montado um quiosque pra ela, com a intenção de que ela também se juntasse a eles. Confesso que senti meu mundo desabar. Não conseguia ver a minha vida sem Jane. Ao mesmo tempo, não podia impedi-la de crescer na vida, de prosperar. Mas foi muito difícil dizer adeus a ela. Choramos muito no mesmo abraço. E por mais que eu viva, nunca vou conseguir agradecer-lhe o suficiente.
A última que eu tive se chamava Maria. Também não guardei seu sobrenome, mas era uma daquelas marias de todas as horas. Era calada e discreta e estava sempre disponível para qualquer coisa que precisássemos. Maria chegou numa época bem diferente de minha vida. Meus filhos já eram adultos e a casa bem mais silenciosa. Chegou em janeiro, no mesmo mês de um ano terrível em que uma grande tempestade começou a desabar sobre minha cabeça. Por isso, nem tive tempo de lhe ensinar os hábitos da casa. Mas ela soube respeitar meu silêncio e minha tristeza. E foi cuidando da minha casa, enquanto eu me sentia completamente sem chão...
Em outubro, tudo foi consumado. Perdi o emprego e passei a trabalhar em casa. A partir daí, ela passou a ser minha companheira de todas as manhãs. Depois que todos saíam para trabalhar, eu me sentava na sala, diante do computador, enquanto ela se revezava entre a casa e a cozinha. Lá pelas 10 e meia, eu entrava na cozinha pra roubar um cafezinho e lá estava ela, preparando o almoço. “O que temos hoje, Maria?” E minuciosamente, ela me dizia o cardápio daquele dia.
Uma das vantagens de se trabalhar em casa é que não há mais necessidade de relógios. Somos nós quem fazemos o nosso tempo. Mas o meu tempo quem fazia era Maria. Quando ela vinha varrer a sala, por exemplo, eu sabia que eram 9 e meia. Quando ela passava pelo corredor, carregada de apetrechos para lavar os banheiros, eu podia apostar que já eram 11. E quando ela chegava com a toalha da mesa, eu sabia que faltavam exatamente 10 minutos para o meio-dia. Foi assim durante 3 anos e meio. Cuidando da minha casa, para que eu pudesse continuar cuidando da minha vida.
Ontem ela chegou diferente, com uma expressão carregada de tristeza. O marido tinha tido um AVC, estava com um lado paralisado e, por isso, ela não poderia mais trabalhar fora. Dessa vez a tempestade caíra sobre sua cabeça. Antes de sair, um último gesto de carinho: um bolo de chocolate para Victor. Hoje minha manhã foi um pouco diferente. Senti falta da vassoura sob os meus pés, da cozinha vazia quando fui buscar um café, da toalha da mesa que não apareceu perto do meio dia, da presença silenciosa de Maria. - Sabe o que tivemos hoje, Maria? Só saudade...
(Lilian Rocha – 26.8.16)

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