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"O CANTINHO DA LILI"

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 5 min de leitura

Sempre tive uma inveja danada dos meus colegas de infância quando voltavam das férias e narravam suas aventuras, a maioria passada em sítios ou fazendas de avôs. Passeios a cavalo, frutas comidas lá mesmo, em cima das árvores, notícias diversas sobre bois, vacas e galinhas, universo tão distante do meu... E o pior era ter que fazer aquela redação sobre as férias no primeiro dia de aula! Que tortura!

Minha casa não tinha quintal, muito embora fosse enorme aos meus olhos de criança. Morávamos numa rua de nome estranho, ‘Enos Sadock’, que eu nunca soube de quem se tratava. Uma rua larga, mas toda empiçarrada, sem árvores, que fazia parte do ‘Conjunto dos Bancários’, situada no longínquo Bairro São José.

Poderia ter feito dela a minha ‘fazenda’ e tornado minhas férias tão apetitosas quanto a dos meus colegas, já que era uma rua tranquila, por onde quase não circulavam carros. Mas transformar uma rua de piçarra em ‘fazenda’ era pedir demais à minha imaginação. Além do mais, os únicos cavalos que passavam por ali vinham puxando uma carroça tão pesada que a julgar pela cara de sofrimento deles, também sonhavam com a mesma fazenda que eu...

Não, decididamente meu avô não tinha fazenda e se eu quisesse salvar aquela redação, eu que arranjasse outra história pra contar... E eu arranjei.

- Meu pai, preciso de um balcão. Quero abrir um armazém.

Não sei o que se passa pela cabeça de um pai quando uma filha de 10 anos faz um pedido como esse, mas o meu pai levava muito a sério a minha imaginação. Me conhecendo bem, sabia que aquele súbito ‘espírito empreendedor’ viera das minhas repetidas idas à ‘Mercearia Costa’, o lugar mais fascinante do meu bairro.

A Mercearia Costa, nome que eu nunca esqueci, ficava na Av. Edézio Vieira de Melo, a rua atrás da minha, bem na esquina com a Av. Hermes Fontes. Era um armazém sortido, que vendia de tudo: pão, manteiga, caneta, bala, prego, até papel celofane. E eu adorava a Mercearia Costa! Principalmente aquele baleiro de vidro, giratório, cheio de divisórias, que ficava em cima do balcão. Vez por outra lá estava eu, comprando balas ou chicletes, só pra ver Seu Valdemar rodar o baleiro, abrir a tampa de alumínio e me dar a bala desejada. Ele tinha uma prática invejável, não errava uma! E enquanto isso, aquele entra e sai constante de fregueses, atrás das coisas mais inusitadas, fazendo abrir e fechar a caixa registradora tantas vezes...

Sem dúvida nenhuma, eu queria ter um armazém. Com caixa registradora e baleiro de vidro. E que vendesse de tudo, igual à Mercearia Costa. E meu pai sabia disso. Tanto sabia que no dia seguinte ele entrou em casa carregando uma prateleira que, apoiada sobre um banco de madeira e uma mesinha de cabeceira, logo se transformou no meu balcão. Dentro da gaveta da mesinha, fiz umas divisórias de papelão para separar as notas de dinheiro, tal qual uma caixa registradora e comecei a treinar os joelhos... Depois de digitar alguns botões imaginários em cima da mesinha, eu abria a gaveta com o joelho, bruscamente, como se realmente ela fosse automática! Estava pronta, pois, minha caixa registradora!

Em seguida, prendi um cordão, de um lado a outro da varanda, e com pregadores de roupa, pendurei todas as nossas revistinhas. Ia vendê-las pela metade do preço, já que eram todas lidas. Mas além de revistas, eu precisava vender balas e chicletes também. Como é que eu podia pensar em me estabelecer no comércio sem balas e chicletes? De jeito nenhum!

Fui então à Mercearia Costa, comprei CR$1,00 de chicletes, que dava pra 10 unidades e com CR$0,50, comprei 20 balas. Como não tinha um baleiro de vidro, minha mãe me cedeu um pote de biscoitos. “Pra começar - disse ela – depois a gente compra um de vidro”. É claro que não era a mesma coisa, mas gostei daquela história de ‘pra começar’ e aceitei. Se minha mãe, realista como ela só, dissera ‘pra começar’, é porque ela certamente já estava vislumbrando o meu sucesso no mundo dos negócios. Quase tudo pronto, só faltavam... os crachás. Isso mesmo, os crachás dos vendedores. Afinal, como é que os fregueses iam saber os nossos nomes?

Recortei uns pedaços de papel, e em cada um escrevi “Cantinho da Lili” e o nome do vendedor, que nada mais eram do que meus dois irmãos menores, Petrônio e Paulo. Quem manda terem nascido depois de mim?

Não demorou para que os primeiros fregueses começassem a chegar. Eram todos crianças da vizinhança que se encantaram com as balas e chicletes. Um ou outro levava alguma revistinha. O forte mesmo eram os chicletes. Por isso, que de vez em quando, eu deixava a loja aos cuidados dos meus ‘subordinados’ e saía correndo até a Mercearia Costa pra repor o estoque. Entregava o meu CR$1,00, ganho com o suor do meu trabalho, e voltava satisfeita, com mais 10 chicletes para vender.

Um dia, entrou na loja o filho de uma das nossas vizinhas, que era bem mais velho que a gente, e comprou todo o nosso estoque de revistas. Foi uma felicidade! Em compensação, os artigos da nossa loja ficaram reduzidos a balas e chicletes. E dentro da caixa registradora o mesmo 1,00 cruzeiro de sempre, que no dia seguinte, se transformaria em 10 chicletes outra vez.

Foi então que minha mãe, com pena de mim, resolveu intervir, me dizendo que eu não estava tendo ‘lucro’ com os chicletes, já que eu os estava vendendo pelo mesmo preço. Se ela não tivesse me explicado, não ia fazer a menor diferença, pois o que eu queria mesmo era vender. E ‘vender’ significava, pra mim, atender os fregueses, anotar as vendas do dia numa cadernetinha, me tornar cada vez mais hábil em abrir a minha caixa registradora com o joelho e assim por diante. Lucro era palavra desconhecida pra mim e não fazia parte da minha brincadeira.

Mas não nego que fiquei satisfeita com a caixa de Chicletes “Ploc” que ela comprou pra mim e a aula de investimentos que ela me deu. Entretanto, quando se tem vendedores de 6 e 4 anos de idade, qualquer grande investimento é perigoso. Ainda mais quando este grande investimento significa uma caixa amarelinha, com 50 chicletes dentro...

Dois dias depois, encontrei a caixa vazia debaixo da cama de um dos meus irmãos. Aborrecida, demiti os dois e fechei o meu estabelecimento. Mas ganhei 10 na minha redação daquele ano, sobre ‘empreendedorismo’...

(Lilian Rocha)

PS: Quase 40 anos depois, minha querida ex-aluna Alexsandra Lima Oliveira haveria de realizar meu sonho de criança, me dando um presente inestimável: um baleiro de vidro, giratório, com tampas de alumínio e recheadinho de balas e chicletes...


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