top of page

O CONSULTÓRIO DO DR. EUFEMISMO

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 4 min de leitura

Depois de escrever sobre Morfologia, Fonética e Sintaxe, só me restava escrever sobre a Estilística, um capítulo da gramática que sempre me fascinou. Quando eu era aluna, eu gostava de ficar repetindo o nome das figuras de linguagem, tentando decorá-las: Catacrese, Prosopopéia, Aliteração, Anacoluto... Mas eram nomes tão estranhos que assim que passava a prova, todo mundo se esquecia. Um dia, disse brincando a algumas colegas que quando eu tivesse meus filhos, iria batizá-los com esses nomes. Meus filhos nasceram, mas para que eles não ficassem com raiva de mim mais tarde, preferi chamá-los de Felipe, Júlia, Letícia, Gustavo e Victor...

Mas as figuras de linguagem nunca me saíram da lembrança. E agora ali estava eu, pronta a dar vida a todos aqueles nomes esquisitos! Imaginei logo que todas aquelas estranhas figuras estavam seriamente doentes, precisando de um médico. E para acalmá-las, ninguém melhor do que o “Dr. Eufemismo”, sempre calmo, tentando amenizar todas as expressões...

Com essa ideia na cabeça, fui escrevendo a história, criando personalidades para cada uma daquelas figuras que me intrigaram na adolescência. Depois de pronta, meu filho Victor sugeriu chamá-la de “O Consultório do Dr. Eufemismo.”

Agora viria a melhor parte: escolher os atores, acompanhar os ensaios, pensar no cenário, divulgar o espetáculo... Mas deu tudo certo! Aos alunos do Arqui se juntaram alguns ex-alunos que já tinham participado de outras peças e essa mistura foi perfeita!

Como a história dizia respeito ao dia-a-dia de um consultório médico, decidi estender o convite ao meu irmão Petrônio, que é médico. Os outros irmãos já eram presença garantida, mas Petrônio era o mais resistente. Dizia ele que era “traumatizado” com teatro, graças a uma peça que nós tínhamos visto, ainda adolescentes. Realmente, a tal peça tinha sido horrível, pois os atores, muito inexperientes, deram um tom de declamação às falas, tornando o espetáculo muito artificial. “Depois daquela experiência terrível, - disse-me ele, - nunca mais pisei num teatro!”

Procurei convencê-lo de que dessa vez seria diferente, ele iria gostar. “Meus atores” eram quase profissionais, nem pareciam alunos, e se ele estava pensando que eles falavam com aquele jeito todo afetado, estava enganado!

Fizemos três sessões, uma de manhã, para os alunos do colégio, e à tarde e à noite para os demais convidados. Meu irmão foi à tarde. Chegou discretamente, muito antes da hora, e sentou-se lá no fundo do auditório. Estava sério, com cara de quem só tinha ido para me agradar. Chamei-o para a frente e ele veio, muito a contragosto.

Quem vê Petrônio pela primeira vez, se assusta com o seu aspecto sisudo, pensando que ele não ri nunca. Mas eu sei que ele tem o riso fácil, pois várias vezes fui testemunha de suas gargalhadas, em programas bobos como Tom e Jerry ou Chaves. Por isso, depois de acomodá-lo na segunda fila, corri para pedir aos atores que caprichassem, pois eles tinham que tirar o tal trauma do meu irmão...

Assim que as cortinas se abriram, lá estavam sentadinhos, esperando a hora da consulta, a D. Catacrese, toda sem modos, a jovem Metonímia, conversando com o Sr. Aliteração, e o Sr. Paradoxo, muito sério, lendo algumas revistas. Mas só quando a elegante Metáfora chegou, foi que a peça começou de verdade. Um a um foram sendo atendidos pelo Dr. Eufemismo, um médico completamente maluco, mais medroso do que qualquer paciente, que detestava ouvir palavras como “cirurgia”, “anestesia”, “doença grave” e, principalmente, “morte”, a pior de todas! Para ele, nenhuma doença era grave...

Olhei meu irmão de soslaio, mas ele continuava sério, apesar das gargalhadas do auditório.

E o espetáculo prosseguiu. Agora o Dr. Eufemismo tentava convencer a Metonímia de que ela não tinha doença nenhuma. E bem no momento em que ele beijava a mão da garota, sua esposa, D. Hipérbole, invadiu o consultório, fazendo o maior estardalhaço.

Hipérbole, na Estilística, significa “exagero” e eu nunca fui tão exageradamente feliz na escolha da atriz, quando escolhi Millena Ribeiro, para interpretá-la. Com os braços cobertos de pulseiras e falando quase gritando, Millena era o típico exemplo dessas mulheres exageradamente ciumentas e sem classe, que armam um verdadeiro escândalo, ao menor deslize do marido. E foi exatamente Millena quem conseguiu arrancar a primeira gargalhada do meu irmão...

Daí em diante, ele não parou mais de rir. Ele riu quando a Hipérbole desmaiou de aflição ao ver que o seu querido filhinho, o Pleonasmo, tinha se transformado num Pleonasmo Vicioso, graças à nociva companhia dos Vícios de Linguagem, o Barbarismo e o Cacófato; Ele riu quando a Ironia, filha da Hipérbole, apresentou ao pai o seu desengonçado namorado, o Estrangeirismo; Ele riu quando viu minha filha Letícia encarnar o papel da Sinestesia, uma mocinha muito maluca, que misturava os sentidos; Ele riu quando conheceu o Solecismo, filho da D. Catacrese, completamente viciado em erros de concordância e regência; Ele riu quando Renatinha Mello, minha ex-aluna, fazendo o papel da espevitada repórter Litotes roubou a cena... E riu até dos diálogos, sem pé nem cabeça, travados entre o Sr. Paradoxo e a D. Metáfora.

E de tanto que riu, resolveu voltar à noite com a esposa, para a terceira sessão. Dessa vez, não precisei chamá-lo para a frente. Ele mesmo fez questão da primeira fila.

Ao final do espetáculo, ele parabenizou cada um dos atores pela excelente atuação e me disse, em segredo, que eu o tinha livrado do trauma...

Fiquei feliz, portanto. Não só por essa ‘vitória”, mas por ter realizado um antigo sonho. Coloquei no palco um punhado de alunos, transformei-os em filhos e batizei-os com os nomes das figuras de linguagem, como eu tanto queria! Mas dessas figuras eu jamais hei de esquecer...

(Lilian Rocha - Texto extraído do meu livro "O Bilhete", 2006)


Foto: elenco da peça formado por alunos do Colégio Arquidiocesano - 2004

Commenti


RECENT POSTS
SEARCH BY TAGS
ARCHIVE
bottom of page