O JÚRI
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 5 min de leitura
Só uma única vez assisti a um Tribunal de Júri, mas foi uma experiência que eu nunca esqueci. Eu estava em Salvador e fui por curiosidade, junto com uma amiga, pois morria de vontade de ver como era. O réu tinha cometido um assalto e, ao ser surpreendido pela polícia, se desesperou e atirou, matando uma pessoa que não tinha nada a ver com a história. Resultado: ele foi preso em flagrante e lá ficou durante uns 5 anos, esperando o julgamento, que seria exatamente naquele dia.
Ora, qualquer pessoa, ouvindo falar nessa história, imediatamente condenaria o sujeito, pois a gente sabe que não se deve roubar nem matar. Ainda mais assim, “sem motivo”. Que coisa mais absurda! Foi assim que eu pensei também e foi com esse pensamento que entrei para assistir.
Não havia muita gente no salão, mas a grande maioria dos presentes era composta de familiares e amigos da vítima. O réu entrou e, em silêncio, se sentou em frente ao juiz e aos jurados e de costas para o público. E assim, em silêncio e de cabeça baixa, ele permaneceu durante todo o tempo em que durou o julgamento.
O juiz apresentou aos jurados o processo, depois as testemunhas foram ouvidas e, em seguida, começou a parte mais interessante, os debates entre acusação e defesa. O primeiro a falar foi o promotor. Fez uma retrospectiva do ocorrido e depois passou a acusar o réu de todas as maneiras possíveis. Relembrou que o motivo foi fútil e que, na sua intempestividade, ele acabara deixando viúva e desamparada a mulher da vítima que agora tinha que arcar sozinha com a criação dos filhos, pois seu marido era arrimo de família e não sei mais o quê. Nem precisava falar tão bonito, pois como eu disse no início, era assim que a maioria pensava e era aquilo mesmo que a maioria dali queria escutar. Aquele criminoso não merecia perdão. Tinha que continuar preso, pagando pelo que fizera.
Em seguida, foi a vez do advogado de defesa. Era um desses advogados bem conceituados e famoso por ganhar muitas causas difíceis. Quando ele entrou, pensei com meus botões: “Esse daí já perdeu. Não tem como defender esse criminoso...” E ele começou a falar. Andando de um lado para o outro, ele ia desfiando seu rosário de argumentos em favor do réu. E com uma habilidade fora do comum, ele provou aos jurados, perante uma plateia atônita, que o homem tinha atirado em legítima defesa e, por isso, tinha que ser absolvido.
A partir daí, minha cabeça deu um nó. Comecei a achar que o advogado tinha razão. O réu tinha errado, sim, mas quem nunca errou, afinal? Ele tinha matado, sim, mas não tivera “a intenção”. E quem de nós nunca se viu tentado a agir por impulso? O réu tinha roubado, sim, mas quem de nós poderia saber o que o motivara a praticar o assalto? Sim, aquele criminoso merecia perdão e tinha que ser absolvido. Afinal, ele já tinha pagado pelos seus erros durante o tempo em que estivera na prisão. Podia ser solto agora, reconstruir sua vida... Em silêncio, comecei a torcer por ele.
Depois da defesa, os 7 jurados escolhidos para compor o Conselho de Sentença foram encaminhados para uma sala secreta onde deveriam votar ‘Sim” ou “Não” para cada um dos quesitos formulados pelo juiz. Explicaram-me que o número ímpar dos jurados é proposital, para que não haja empate. E enquanto durou esse “intervalo”, fez-se tumulto na plateia, devido ao alto nível de ansiedade, principalmente por parte dos familiares da vítima, que intimamente clamavam por justiça.
Encerrada a votação, a sessão foi retomada, debaixo de um silêncio ensurdecedor. Todos os olhares agora estavam voltados para o juiz. Um a um ele contabilizou os votos e finalmente pronunciou o veredito: o réu fora absolvido por 4 votos contra 3. Lembro-me perfeitamente do impacto que aquelas palavras causaram na plateia. Alguns suspiraram, aliviados; já outros resmungaram, furiosos e revoltados, pois não achavam possível um criminoso daqueles ser absolvido!
Não sei o que aconteceu depois daquele dia. Nem com o réu, nem com os advogados. Mas em mim, deu-se uma tremenda confusão. Percebi o quão inexata é a ciência do Direito. O que é “certo” pra uns, pode ser “errado” para outros e o que é “errado” para todos pode vir a se tornar “certo” um dia. Depende, sobretudo, de “como se vê”.
Há uma linha muito tênue separando o “certo” e o “errado” no Direito, pois tudo tem dois lados e todos, absolutamente todos, têm direito à defesa. E até mesmo aqueles que forem intimados a depor, por terem sido considerados culpados por outras tantas pessoas, também podem ficar calados durante o interrogatório, se assim o desejarem, pois, segundo o inciso LXIII do artigo 5º da Constituição Federal, “ninguém é obrigado a constituir prova contra si mesmo”. É ou não é genial?
No Direito, tudo é direito e todos têm direito aos direitos. Não há essa história de “certo e errado”. Isso é coisa para leigos. Nada é completamente certo e nada é completamente errado. Tudo “é possível”. Todo certo pode ser errado e todo errado pode ser certo. Depende de “quem vê”, de “como se vê” e da “interpretação” que se dá à lei. Depende de quem falar melhor, de quem apresentar os melhores argumentos, de quem tiver melhor poder de persuasão...
É exatamente assim que estou me sentindo ultimamente. Assistindo a um “júri” que parece não ter fim. Mas um júri surreal, onde os papéis se invertem a cada instante. De repente, um réu vira promotor, um juiz vira réu, um réu vira juiz e até um promotor se mostra igual ou pior que o próprio réu... Nenhuma posição é claramente definida. O que era certo neste minuto pode virar um absurdo no instante seguinte. Depende de quem vê, de quem lê, de quem interpreta... E os promotores e advogados de defesa se multiplicam a olhos vistos. Cada qual caprichando mais no seu discurso, no seu poder de persuasão.
Confesso que já não sei mais o que é certo ou errado, nem quem está certo ou errado, nem quem está mentindo ou falando a verdade. Todos estão certos e parecem provar isso a todo momento, a julgar pela segurança e intimidade com que citam aqueles milhares de incisos, parágrafos e artigos da nossa Constituição. Mas se tudo têm dois lados, nem todos estão certos. E se uns estão certos, então outros hão de estar errados. Mas QUEM? Em quem acreditar? Em quem confiar?
Resolvi, então, me retirar de cena e secretamente já dei meu veredito, já fiz minha escolha. E se alguém vier me questionar a respeito, cumprirei com rigor o que está estabelecido no inciso LXIII do artigo 5º da Constituição Federal: permanecerei em silêncio. Afinal, “ninguém é obrigado a constituir prova contra si mesmo”...
(Lilian Rocha – 1º.04.16)

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