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O MEU PÁSSARO ENCANTADO

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 4 min de leitura

Foi Ricardo Monteiro quem me apresentou a ele. O nome do livro era “Estórias de quem gosta de ensinar”. Naquele tempo eu gostava de ensinar e gostei de tudo que ele me ensinou. Principalmente porque ele ensinava diferente de todos os outros professores que tive. Ensinava com simplicidade, por meio de parábolas, metáforas e poesias. Como todos os professores do mundo deviam ensinar...

Para ele, a melhor sala de aula era uma cozinha. Isso mesmo, uma cozinha! Por um motivo muito simples: o ensino tem que ser “saboroso”, pra despertar nos alunos a ‘fome de aprender”. Prova disso é que a palavra ‘saber’ vem de ‘sabor’. Aula sem gosto não tem graça nenhuma... E numa cozinha a gente pode aprender tudo o que quiser. Principalmente ‘aprender a ver’. Pois é essa a primeira função da educação, “ensinar a ver”. E para ver, não basta ter olhos. É preciso ter olhos de criança, “que brincam com o que vêem, que olham pelo prazer de olhar, que querem fazer amor com o mundo...” Somente com olhos brincalhões, a gente consegue ver a cebola como uma flor, coberta de pétalas finas e transparentes... Ou aprender com as pipocas que é necessário passarmos pelo fogo do sofrimento, se quisermos nos transformar em pessoas mais macias e saborosas...

Era assim que ele ensinava. Despertando ‘a fome’ na gente. Fome de ouvir, de aprender, de fazer e de ser, um dia, igual a ele. Infelizmente, tive muitos professores que não sabiam ‘cozinhar’ direito e nos obrigavam a comer. Comíamos sem fome, engolíamos em silêncio, sem mastigar, mas na primeira oportunidade a gente vomitava tudo... Porque “cada experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva”, ensinava ele. “Fome é ‘afeto’, uma palavra latina que significa ‘ir atrás’. É a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado”...

Foi com ele que aprendi por que não consegui aprender tantas coisas. Faltou despertarem em mim a ‘fome’. Minha fome sempre foi de palavras, não de números. Fome de conhecer, de descobrir o porquê das coisas que ninguém conseguia explicar direito. De repente conheci uma pessoa que conseguia responder todas as minhas perguntas de professora inquieta e rebelde. Alguém que também era contra o vestibular, alguém que propunha e defendia um ensino mais saboroso...

Lembro-me de uma das minhas primeiras experiências como professora. Eu tinha 20 anos e era professora do 3º ano primário de uma escola muito tradicional. E tinha muita fome de ensinar diferente... Um dia, numa aula de Ciências sobre o corpo humano, levei minhas 28 crianças para o pátio, que ficava exatamente na frente da escola, e pedi-lhes para deitarem no chão, de olhos fechados. Foi uma festa! Em seguida, pedi a elas que enquanto eu fosse dizendo o nome das partes do corpo, elas fossem tocando no próprio corpo, pra reconhecerem e aprenderem onde se localizavam. “Depois desse osso bem comprido do tórax, vocês vão sentir um buraco. Esse buraco é o estômago... Mais embaixo, no abdômen, moram o fígado, o baço e o pâncreas. E como todos são amigos, vão ajudar o estômago a fazer a digestão... porque é muito trabalho para o estômago fazer sozinho, coitado... Por isso, depois de comer, a gente tem que ficar bem quietinho, pra não atrapalhar o trabalho deles...”

No final do ano, fui chamada à direção e demitida. Quando perguntei por que, eles disseram apenas que eu... "ensinava diferente" e isso não era permitido naquela escola. Chorei muito quando cheguei em casa, pois não conseguia entender onde estava minha culpa, se os alunos me garantiram que tinham aprendido tudo!...

Apesar disso, nunca me corrigi. Continuei ensinando brincando, pois se ensinar pra mim era prazeroso, o ‘aprender’ também tinha que ser... Inventei um dominó de coletivos, um bingo de locuções adjetivas, um supermercado de palavras, um desfile de modas com os tempos verbais, uma ‘cidade da morfologia’, um monte de paródias sobre as classes gramaticais, e cansei de levar o som pra sala de aula pra ensinar com músicas. E se por acaso eu estivesse numa certa ‘sala 15’, o melhor local pra acompanhar a música era lá em cima, no peitoril da janela... Sim, ele tinha toda razão. “As verdadeiras cozinheiras são aquelas que produzem fome.” E as palavras dele saciavam minha fome de educadora.

Mas não era só de educação que ele entendia. Ele também era psicanalista e entendia como ninguém de comportamento humano. Dizia que havia dois tipos de casamento: o ‘casamento-tênis’ e o ‘casamento-frescobol’. E explicava: “O objetivo do tênis é derrotar o adversário, jogar uma bola de modo que o outro não consiga pegar; já no frescobol, não existe adversário, a gente faz o maior esforço do mundo para que o outro pegue a bola... E ninguém fica feliz quando o outro erra. O que errou pede desculpas e o que provocou o erro, se sente culpado.” Gostei tanto desse texto, que resolvi mandar um e-mail pra ele. E para minha surpresa, ele me respondeu. Saí correndo pelos corredores da escola, feito doida, exibindo meu e-mail pra todo mundo... Parece uma bobagem, mas naquele tempo não havia facebook, era quase impossível chegar até uma pessoa importante.

Depois tive a oportunidade de vê-lo pessoalmente, numa palestra. Enfrentei uma fila enorme só para dizer a ele que ele era “o amor da minha vida”... Ele riu. Em 2005, fui pra Bienal do Rio e lá estava ele outra vez. Não resisti e entrei na fila dos autógrafos. Dei um livro meu para ele e tornei a repetir no ouvido dele que ele era o amor da minha vida.

Sim, ele era mesmo. O amor da minha vida de professora. O educador com quem mais me identifiquei. Ele me fez acreditar que eu estava certa quando levei aquelas crianças para o pátio...

Foi-se Rubem Alves, o pássaro encantado que enfeitou meus sonhos de professora e por muito tempo me fez acreditar e lutar por uma educação onde o ‘saber’ tivesse mais ‘sabor’... Estou com a alma triste, como deve estar a de tantos outros educadores. Mas vou deixá-lo ir, pois como ele mesmo disse: “Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um pássaro encantado. E tu deixarás de me amar...”

(Lilian Rocha – 24.07.14)


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