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SILÊNCIO

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 17 de nov. de 2017
  • 3 min de leitura

Sempre gostei dela. De cantar as músicas dela e mais ainda, de imitá-la cantando. Porque muito mais que cantora, ela sempre foi muito teatral, nos gestos, no olhar, na voz, em tudo. Suas músicas eram sempre entremeadas de poemas ou de trechos literários e de tanto ouvir, eu acabava cantando igual a ela, interrompendo a música para declamar algum poema, caprichando nos “erres” e “esses”, para logo em seguida, voltar pra música de novo... era uma delícia! E enquanto eu brincava de cantar como ela, ia aprendendo também literatura, sem nem sentir...

Não foram poucas as vezes em que pus uma saia comprida, um monte de colares e de cabelos assanhados e pés no chão, eu fingia que era ela. Meu palco era a cozinha da minha casa e meu público, a cozinheira e a passadeira de roupas. E meu microfone, o fio comprido do ventilador...

E à medida que fui crescendo, ela também foi me acompanhando. Esteve comigo na minha adolescência inteira, junto com todos os outros baianos, velhos e novos. Um dia, tive o privilégio de assistir ao show dos “Doces Bárbaros”, no Teatro Castro Alves, em Salvador, uma dessas coisas raras que acontecem na vida da gente e que só mais tarde é que vamos perceber a importância.

Muitas de suas canções se transformaram em trilhas sonoras de muitos momentos importantes de minha vida. Sonhei com ela um “sonho impossível”, chorei muitas vezes por causa de “um jeito estúpido de amar”, planejei me vingar como em “Olhos nos olhos”, desejei encontrar o terceiro homem de “Terezinha” e me apaixonei para sempre pelos versos de Fernando Pessoa que quase sempre enfeitavam suas músicas. Também foi ouvindo “Luzes da Ribalta”, em 74, que recebi a notícia do falecimento de meu avô. E basta que eu a ouça para que eu volte no tempo outra vez, até aquela tarde cheia de tristeza...

Mas talvez o que mais me encanta em Maria Bethânia é sua versatilidade. Com a mesma naturalidade com que ela passeia pelo universo de Vinícius, Noel Rosa, Gonzaguinha, Chico, Mário Lago e tantos outros, ela penetra em outros reinos e delicadamente, como quem colhe uma flor, escolhe uma música e a leva pra casa. A partir daí, essa música nunca mais será a mesma. Receberá o seu sopro mágico e retornará ao palco, linda e majestosa, como nunca ousara ser. Assim ela fez com “É o amor”, de Zezé di Camargo e Luciano. Com sua sensibilidade, ela tirou-lhe o “vestido de chita” e pôs nela um elegante “vestido de noite”...

Assim ela fez quando ouviu “Silêncio”, a composição mais recente da paraibana Flávia Wenceslau. Encantada com a música, não sossegou até descobrir quem era a autora de tão bela composição. E humildemente, pediu-lhe licença para entrar com sua música no palco e, com ela, encerrar seu último show.

E assim ela tem feito. Descobrindo compositores, colhendo canções com seus ouvidos mágicos e enchendo de música a alma da gente.

Ontem, sem querer, ouvi “Meu primeiro amor”, uma das trilhas da nova novela, só que na versão original, exatamente como eu a conheci, e minha alma, subitamente, se alegrou. Lembrei-me de Rubem Alves que dizia: “Quando a alma ouve o poema ou escuta a música dos artistas, a beleza que mora na alma se reconhece e desperta. Foi isso que aconteceu comigo. Senti beleza ao ouvir a sonata, porque ela já morava dentro de mim. Senti-me, então, tão belo quanto a sonata.”

E assim, com minha alma alimentada de beleza e de saudade, eu me despeço por hoje. Em "silêncio". “Silêncio, pra eu me lembrar de tanta coisa que eu sonhei Encontrar todas as folhas que eu juntei Por essa estrada que me trás até a mim”... (Flávia Wenceslau)

(Lilian Rocha – 3.4.16)

https://www.youtube.com/watch?v=BgJ8PzvuRcM


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