SÃO JOÃO DE SAUDADE
- Lilian Rocha
- 17 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Durante algum tempo de minha vida, o São João foi minha festa preferida. Talvez pelo clima bucólico que ela me transmitia, principalmente através das músicas. Era uma festa diferente, onde a gente trazia pra perto aquele pedaço do Brasil mais genuíno, mais ingênuo, mais doce. O Brasil das roupas remendadas, das tranças nos cabelos, dos chapéus de palha, enfim, o Brasil da simplicidade...
Morávamos no Conjunto dos Bancários, no Bairro São José, numa Aracaju que não conhecia apartamentos. Todo mundo morava em casa, todo mundo se conhecia e, por isso, era bem comum uma vizinha bater na porta de outra, atrás de uma xícara de açúcar pra terminar alguma receita. Ninguém vivia com medo, como hoje.
Nossa rua era bem larga, mas não era calçada. Era de terra batida, como muitas daquele tempo. Na noite de São João, tinha uma fogueira acesa na porta de cada casa, era lindo de se ver! E fogueira horizontal, daquelas bem tradicionais, nada dessas fogueiras em pé, horrorosas! Depois, cada família colocava as cadeiras na calçada, uma mesa de comidas, um rádio ligado e a festa começava. Sim, porque a ‘festa’ consistia apenas nisso. Em reunir a família na porta de casa, comer canjica, esperar o milho assar na fogueira, ouvir música e conversar fiado, enquanto as crianças soltavam fogos.
Nossa festa só começava de verdade, quando a família de minha tia chegava. Eles sempre passavam o São João com a gente, era uma delícia! Minha tia levava mais comida e meu tio, mais fogos. E os dois levavam mais 4 crianças que se juntavam a nós, os 6 filhos de meus pais. De modo que o nosso São João era sempre mais “farto” e mais animado que todos os outros da rua...
Assim que eles chegavam, a gente escolhia um cantinho da varanda, onde não pegasse muito vento e acendia uma vela. Dali em diante, podíamos soltar fogos, ou seja, chuvinhas, estrelinhas cobrinhas e outras bobagens. Os fogos mais incrementados só os adultos tinham acesso. Mas nada de bombas nem buscapés. Isso não entrava em nossa casa.
Lá pras tantas, o sono ia chegando e as crianças começavam a despencar. Era hora de desarrumar tudo, levar as cadeiras pra dentro, tirar aquela roupa com cheiro de fumaça e cair na cama, contando os dias pra São Pedro chegar e começar tudo de novo...
Depois fui crescendo e meu interesse pelo São João se modificando. Passei a me interessar pelas “adivinhações”, pra saber com quem eu iria me casar. Assim que dava meia-noite, lá estava eu, em frente a uma bacia cheia d´água, com uma vela acesa na mão, vendo os pingos de cera caírem lentamente na bacia, esperando, ansiosa, que eles formassem a letra do "meu interesse”. Mas nem sempre São João me atendia. Ou não aparecia letra nenhuma ou então era eu quem não entendia a linguagem dele... Da última vez que fiz isso, torci pra que saísse uma letra “D”. Mas a letra que se formou foi um “A”. Fiquei tentando me convencer de que aquilo não era, propriamente, um “A”, mas apenas um “D” malfeito... Mas qual o quê! O “A” era tão perfeito que não restavam dúvidas. Passei o resto da noite com raiva de São João... (Sorte minha, pois no ano seguinte, acabei casando com um “A”...)
Lembro também de um São João completamente diferente que passei em Niterói. Em vez de fogueira na porta, bandeirinhas e fogos, a diversão dos adolescentes consistia em confeccionar e soltar balões, uma brincadeira bastante perigosa, mas que ainda não se constituía “crime”. Durante quase um mês, a turma se reunia na casa de um deles e o trabalho se dividia. Uns cortavam papéis de seda coloridos, outros colavam, outros se encarregavam dos enfeites e assim por diante. Aos poucos, o imenso balão ia tomando forma e ficando cada vez mais bonito. Depois de pronto, era hora de tirá-lo de casa e se preparar para acendê-lo e soltá-lo. Confesso que foi um dos espetáculos mais bonitos que já presenciei! Assim que ele começava a subir, eis que dezenas de bicicletas disparavam atrás, rumo ao provável local da queda, para tentar recuperar algumas partes do balão, antes que outros grupos o fizessem primeiro.
De lá pra cá, muita coisa mudou. O número de casas diminuiu muito e, consequentemente, o número de fogueiras e cadeiras nas calçadas também. Os balões foram proibidos, mas os fogos continuam sendo comercializados livremente, embora o número de queimados nos hospitais continue crescendo a cada ano. O clima bucólico de que eu tanto gostava desapareceu por completo. No seu lugar, uma enxurrada de músicas de ritmo estridente e dança erótica, que em nada lembram os forrós de antigamente. Até a quadrilha mudou. Já não reconheço os passos de antes e me causa estranheza esse jeito de dançar de hoje. As pessoas se sacodem tanto que parecem que estão dentro de um liquidificador...
Mas a julgar pelo número cada vez maior de festas juninas e pela disputa das cidades que querem, a todo custo, atribuir para si o título de “Melhor São João do Brasil”, acho que estou sobrando. Eu e minhas saudades. Resta-me uma pergunta: mudou o São João ou mudei eu?
(Lilian Rocha - 25.06.16)

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