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COM A BÊNÇÃO DO PADRE CÍCERO

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 19 de nov. de 2017
  • 8 min de leitura

Foi no início da semana que minha mãe me fez o comunicado: - Sexta-feira que vem você vai pra Fortaleza com Márcia, que tal? - Pra Fortaleza? Como assim? - perguntei, espantada. Ela, então, me explicou: - É que Juca Beato apareceu hoje lá na Repartição, dizendo que vai fazer uma excursão pra Fortaleza e eu comprei dois bilhetes para ajudar... Isso era a cara de minha mãe! Desde que fosse pra ajudar alguém, lá estava ela comprando tudo: bilhetes de rifa, ingressos pra almoço, chá ou jantar beneficente, pra desfiles de moda, pra bazares, pra balaio de são João e até pra excursões! Ela comprava pra ajudar e a gente comparecia aos eventos tão somente para lhe agradar, porque se ela não conseguia dizer 'não' a ninguém, muito menos a gente conseguia dizer 'não' a ela, diante de tamanha generosidade... Só que daquela vez, o esforço que fiz para agradar a ela foi ENORME!!

Corria o ano de 1977 e estávamos no começo do mês de novembro. 'Juca Beato' era uma pessoa muito conhecida em Aracaju dessa época, famoso por organizar excursões baratas, destinadas a um público específico, geralmente senhoras de meia idade. E por ser um homem muito religioso, que vivia em igreja, puseram esse apelido nele: "Juca Beato". Agora fica fácil imaginar como era uma excursão organizada por ele. Era só ele colocar como atração principal uma "visita à Catedral" de qualquer cidade e as senhorinhas vibravam de felicidade, pois eram tão beatas quanto ele...

Só que nesse tempo, eu e minha prima Márcia (a outra "vítima" da história) tínhamos apenas 19 anos e nunca havíamos ouvido falar de Juca Beato, muito menos das excursões dele. Entramos realmente de gaiatas naquela canoa furada...

Pois bem, o bilhete da excursão dava direito à viagem de ida e volta e a duas diárias num hotel com café da manhã. Ou seja, bastava pagar a Juca e ele se encarregava de tudo: contratava ônibus, reservava hotel e fazia toda a programação, de acordo com seu público. Por isso que as excursões dele eram bem concorridas, pois além de um preço bem acessível, a programação também era bastante... "flexível", digamos assim. Na quinta-feira, dia 10, nos reunimos em frente à Catedral para aguardar a saída do ônibus, prevista para as 19h, mas devido a um 'pequeno atraso', ele só saiu às 21h. Assim que eu e minha prima entramos no ônibus, já percebemos de cara que aquela viagem não seria assim tão divertida... Como éramos as mais novas do grupo, fomos as últimas a entrar e, por isso, só nos restaram as duas últimas poltronas da última fila do ônibus. E como era um ônibus comum, a cadeira nem se dava ao trabalho de “fingir” que reclinava... O jeito era aguentar firme! Afinal, Fortaleza era "logo ali", a 1.087km de distância...

O ônibus estava lotado de senhoras de meia idade que pareciam completamente à vontade, como se fossem frequentadoras assíduas daquelas excursões. E na frente do ônibus, ia Juca Beato, o animador da galera de cabelos brancos. E para animar, nada como uma música! Mas tinha que ser uma música conhecida, daquelas que todos sabiam cantar. Ou seja, músicas de igreja, naturalmente!

De vez em quando, durante a viagem, Juca perguntava: "Alguém quer ir ao banheiro?" Imediatamente, uma ou duas mãos se levantavam e o ônibus fazia mais uma parada. E quando ele parava, parecia que a vontade de uma contagiava as outras, pois todas as velhinhas resolviam descer também, desesperadas atrás de um banheiro... Além das "paradas fisiológicas", o ônibus também obedecia a um roteiro rigoroso: parava em cada cidade, para conhecer... a Catedral, claro! Conhecemos a catedral de Maceió, de Recife, de João Pessoa, de Natal e mais que tivesse. Nunca vi uma pessoa gostar tanto de catedrais!...

De volta ao ônibus, mais uma rodada de músicas de igreja (o repertório de Juca era vastíssimo!) para distrair e entre uma rodada e outra, rezávamos também o terço. Foi assim que, de Aleluia em Aleluia, de Hosana em Hosana, conseguimos transpor aquelas centenas de quilômetros e chegar ao nosso destino, 24 horas depois.

Eram 9 da noite, quando o ônibus parou em frente ao “Hotel Savoy”. Era um hotel pequeno e estreito e de chique, só tinha o nome. Ao longo do corredor da entrada, dava pra ver três quartos grandes, azulejados, que foram logo ocupados pelas primeiras senhoras que desceram do ônibus. No fim desse corredor, ficava um pequeno balcão circular que dava a entender que era a recepção. Ali, a gente dava o nome, esperava o rapaz conferir no livro de reservas e, em seguida, recebia a chave do quarto.

Como nosso quarto ficava no primeiro andar, tivemos que subir por uma escada de madeira, bem velha e carcomida pelo tempo. Estava escuro e a escada rangia tanto enquanto subíamos, que dava a sensação de que estávamos numa daquelas casas mal assombradas de filmes de terror... Tivemos dificuldade para enfiar a chave na fechadura, pois na verdade, a fechadura há muito já tinha deixado de existir. Havia só um buraco grosseiro em seu lugar. Nosso quarto tinha apenas duas camas de madeira, uma com um colchão de palha e outra sem colchão. Fora as duas camas, havia apenas uma mesinha que mal dava para acomodar nossas bolsas e sacolas. Não havia janelas, apenas um buraco no alto da parede do fundo, que parecia estar ali há anos, à espera de um basculante que nunca chegou. Para separar um quarto do outro, não havia parede de alvenaria, apenas um compensado de madeira que nem sequer chegava ao teto. De modo que dava pra ouvir tudo o que se passava nos quartos vizinhos. Do teto, pendia uma única lâmpada tão fraca, coitada, que mal iluminava, o que tornava aquele lugar ainda mais lúgubre. Olhamos uma para outra, completamente derrotadas. Estávamos exaustas depois de 24 horas de viagem e só queríamos dormir. Mas era preciso esperar o rapaz da recepção que tinha ido arranjar um colchão para minha cama.

Finalmente o colchão chegou, mas quando abri a porta para recebê-lo, dei de cara com o quarto em frente ao nosso que estava com a porta aberta e a luz acesa. O “hóspede” estava deitado numa rede, fumando, e bem em frente a ele, um imenso facão enfiado na mesinha, sabe-se lá pra quê... A partir daí, foi-se a nossa paz. Tentávamos passar o mínimo de tempo possível dentro do quarto e mesmo assim com a porta fechada. Morríamos de medo de ser assassinadas...

Foi assim nossa primeira noite. No dia seguinte, bem cedinho, ouvimos alguém bater com força na porta do quarto vizinho. “Ei, rapaz, tá na hora de acordar! Vai, abra essa porta!” Ora, considerando que todas as paredes eram feitas de compensado, não foi só o tal rapaz que teve aquele alegre despertar, mas todos os hóspedes daquele corredor. E uma vez acordados, todos tiveram a mesma ideia: ir ao banheiro! O banheiro ficava no final do corredor e atendia a 12 quartos. Por isso, imaginem a fila! Do lado de fora, uma minúscula pia e do lado de dentro, o vaso sanitário e o box de cortina plástica, ambos permanentemente entupidos. Tomávamos banho de sandália, prendendo a respiração e já saíamos de lá vestidas, equilibrando toalha, shampoo, sabonete, pois nada podia cair naquele chão...

Depois de prontas, trancamos o quarto e descemos para tomar o café que já estava “incluso” na diária. O refeitório ficava no vão embaixo da escada “mal assombrada”. Tinha umas 8 mesas, todas de 4 lugares, forradas com um plástico florido, grosso e gorduroso, que grudava nos braços da gente. E por cima dos pratos e talheres, centenas de moscas davam o ar de sua graça. Comemos pão com margarina, um ovo frio e café com leite num copo.

Passamos o sábado todo cumprindo a programação da excursão. Visitamos o centro da cidade, a praia do Futuro, a Aldeota - o bairro mais chique daquela época – e, como não podia deixar de ser, a Catedral. Depois o ônibus parou no Mercado para uma sessão de compras e as velhinhas quase foram à loucura com todas aquelas rendas... Depois, nova sessão de compras na rua Monsenhor Tabosa, famosa pelas lojas de pronta-entrega, apinhadas de gente. À tarde, o ônibus tomou o rumo do cemitério, pois Juca Beato insistia que valia a pena a visita. O cemitério era novo, recém-inaugurado e tinha um formato totalmente diferente dos que eu conhecia. Em vez daqueles túmulos gigantescos e carneiras nas paredes, o que se via era apenas um enorme campo gramado que abrigava as sepulturas, todas internas. Não havia cruzes, só uma pequena lápide enfeitada com flores. Exatamente como os cemitérios modernos de hoje em dia. Só que estávamos em 1977, quarenta anos atrás, e aquilo pra mim foi surpreendente! Tivemos até a oportunidade de assistir a um enterro que estava acontecendo ali. Lembro que fiquei fascinada, quando vi o caixão sendo colocado numas faixas azuis, presas por roldanas, que pouco a pouco iam sendo desenroladas, até ele chegar lá embaixo. Tudo isso ao som de uma música clássica, bem suave, que enchia de paz o coração da gente. E em silêncio, a família a tudo assistia, protegida do sol por um enorme toldo verde. Foi uma experiência inesquecível pra mim! Aquilo nem parecia um cemitério!

No final da tarde, fomos visitar a Encetur, uma antiga cadeia que havia sido transformada num centro de turismo e que ficava bem pertinho do nosso “lindo hotel”. Foi nessa hora que eu descobri que nosso hotel ficava perto do cais do porto e por isso, à noite, aquela rua ficava sempre coalhada de marinheiros e prostitutas...

No domingo de tardinha, deixamos o hotel e iniciamos a longa viagem de volta. Mas como o itinerário era tão “flexível” quanto a programação, Juca resolveu repetir a mesma pergunta que fizera na ida: “Querem ir por dentro ou por fora?” Ora, como a ida havia sido pelo litoral (por isso que demorou 3 vezes mais!), nada mais justo que a volta fosse agora por dentro, o que deixou Juca Beato animadíssimo, pois por dentro teríamos a chance de conhecer Juazeiro do Norte, a terra do famoso Padre Cícero! (bastava ter padre e igreja pra ele se animar todo..!) E lá fomos nós pra Juazeiro, a 500kms dali, numa estrada horrível, cheia de buracos. Mas Juca não tinha pressa. No caminho, por exemplo, ele resolveu pedir ao motorista pra dar uma “passadinha” em Mossoró pra gente... conhecer a Catedral! Esse pequeno desvio aumentou em 150kms a nossa viagem... Mas ninguém se importou, claro, só a gente. Márcia só fazia entortar a boca de raiva e cada vez que eu olhava pra ela, tinha acessos de riso... Quando a gente pensava que nada podia ser pior, eis que a viagem piorava ainda mais...

E de “Glória em Glória nas alturas”, chegamos a Juazeiro, perto do meio-dia. A cidade era minúscula e toda de terra batida. Fazia um calor dos infernos, pois estávamos em novembro, em pleno sertão do Cariri. Imediatamente, lembrei daquelas músicas nordestinas agonizantes, em que o cantor suplica a Deus por chuva pra salvar seu gado. Me senti exatamente assim, como uma vaca agonizando. Meu Deus, é impossível alguma vaca sobreviver ali naquele calor!

A primeira providência foi procurar algum lugar onde vendesse água. Achamos um barzinho chamado “Padre Cícero”, que ficava vizinho a uma farmácia chamada “Padre Cícero” que, por sua vez, ficava em frente à padaria “Padre Cícero”. Tudo isso localizado na praça principal da cidade, também chamada de “Padre Cícero”. Padre Cícero era mesmo um ser onipotente. Estava em todos os lugares ao mesmo tempo, batizando ruas, praças, escolas, restaurantes, farmácias, tudo! E por toda a cidade, havia artesãos vendendo imagens de Pe. Cícero. Não tinha como escapar dele. Acabei comprando uma também, como lembrança de um lugar que eu prometi nunca mais voltar...

Chegamos em Aracaju na terça-feira, completamente estrupiadas, sem noção de tempo nem de espaço. Assim que me viu, minha mãe perguntou: "E então? O que você mais gostou da viagem?” - Do cemitério... – respondi, sem pestanejar.


(Lilian Rocha - 18.11.17)


 
 
 

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