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MINHA ATRIZ

  • Foto do escritor: Lilian Rocha
    Lilian Rocha
  • 30 de dez. de 2017
  • 3 min de leitura

Foi aos 4 anos que eu descobri que ela era uma atriz. Eu estava no meu quarto, corrigindo provas, e ela brincando sozinha, perto de mim. Em dado momento, ela percebeu o espelho que havia atrás da porta e pôs-se a brincar com sua imagem refletida. Primeiro, começou a fazer caras e bocas, divertindo-se com os resultados que ia conseguindo. Depois, pôs uma mãozinha na cintura e, com cara de brava, passou a brigar com a "criaturinha" igual a ela, que estava do outro lado. Em seguida, abaixou os olhos, mudou o tom de voz e fingiu ser a pessoa que estava do outro lado do espelho. Quando cansou de ser "mãe e filha", virou professora e aluna, depois um médico de voz grossa, depois a moça da padaria... A essa altura, eu já tinha me desvencilhado de minhas provas e, completamente encantada, fiquei assistindo àquele espetáculo pelo canto do olho, para que ela não percebesse e resolvesse desistir da brincadeira... De repente, voltei no tempo e me vi também refletida no espelho, brincando de ser várias pessoas que eu não era. Já fui cigana, bruxa, fada, noiva, professora e cantora da jovem guarda. Já coloquei um travesseiro na barriga e fingi que estava grávida... Mas não segui a carreira de atriz. Virei professora, exatamente a personagem que eu mais gostava de representar. Não vivi outras vidas como gostaria, mas vivi intensamente por meus alunos, absorvendo os problemas deles e fazendo das suas alegrias e conquistas, as minhas. Mas Letícia foi muito mais longe. Entrou no grupo de teatro da escola e levou mesmo a sério aquelas longas tardes de sábado. Aos treze anos, eu a vi no palco pela primeira vez, como "Lúcifer", personagem principal da peça de sua sala, e eu fiquei espantada sem saber como ela conseguira decorar aquele texto tão grande...! Aos 14, encontrei com ela no banheiro da escola, com o rosto e o corpo inteiramente pintados de preto e um cachimbo na boca, minutos antes de entrar no palco, para viver um divertidíssimo preto velho que recebia espíritos... Aos 15, ela ganhou o prêmio de Melhor Atriz em "A máquina", uma história linda de Adriana Falcão que eu tive o prazer de adaptar. Letícia fez "Karina", a namorada insatisfeita de "Antônio", que vivia sonhando em sair de sua cidadezinha para conquistar o mundo que nem ela mesma sabia como era... A partir daí, minha paixão pelo teatro reacendeu e eu comecei a escrever peças. E em todas as peças que escrevi, tive o privilégio de ter Letícia como atriz. Ela foi a locução adjetiva "De Cristal", numa peça sobre a Morfologia; foi o "Objeto Direto e Indireto" em "A conquista da oração"; foi o "Vestido de noiva" em "Deu a louca no meu guarda-roupa", que vivia sonhando em virar uma minissaia e se casar com uma calça jeans; foi a divertidíssima empregada "Jane", em "O chá das Oito"; foi a "Sinestesia", a figura de linguagem mais enigmática em "O consultório do Dr. Eufemismo", foi a "Consoante B", numa peça sobre Fonética; foi a "Vogal Temática", em Rasgando o Verbo" e foi até uma velhinha de 150 anos, chamada "Aracaju", numa peça que escrevi, em comemoração aos 150 anos da nossa cidade. Letícia se formou em Jornalismo e dez dias depois conseguiu um emprego numa agência de publicidade em SP e se mudou para lá. Queria ser atriz. Aquele era só o primeiro passo. Quando escolhi o nome dela eu o fiz, também, pelo seu significado: alegria. Queria que ela enchesse de alegria a minha vida. E isso ela tem de sobra! Letícia herdou do pai a alegria ruidosa, e de mim, o meu sonho. Como "Karina", também tinha fome de mundo e por isso, foi em busca daquilo que ela acreditava que lhe faria feliz. Tornou-se atriz profissional e hoje vive de viver muitas vidas, além da sua, enchendo de emoção a vida da gente. E eu continuo observando-a encantada, como se ela fosse ainda a mesma menininha que brincava em frente ao espelho. Mas a menina cresceu, completou 30 anos e o espetáculo que ela nos oferece hoje é outro. Um espetáculo de força, coragem e determinação. Se num dia ela está caída, no dia seguinte lá está ela de pé novamente, pronta pra recomeçar. Pois como uma atriz, ela sabe que nenhuma personagem dura pra sempre. Tudo passa, todos os momentos são fugazes. Mas a beleza do artista consiste justamente nisso, em tornar um breve instante em algo eterno e inesquecível. Parabéns, minha filha, pelos seus 30 anos tão intensamente vividos. Por ter gritado ao mundo repetidamente o que você queria ser. Por ter realizado o seu sonho e se tornado quem você queria ser. E por encher de alegria a nossa vida e fazer dos breves instantes conosco em eternos e inesquecíveis... Um beijo carinhoso de sua mãe e fã número 1, Lilian Rocha (28.12.17)

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