ROTINA
- Lilian Rocha
- 27 de fev. de 2018
- 3 min de leitura
Nunca gostei muito de rotina, de fazer as mesmas coisas todos os dias, como se todos os dias fossem iguais. Jamais me adaptaria a um trabalho que aprisionasse a minha mente e a minha alma. Gosto de imaginar que cada dia é único e traz consigo surpresas inesperadas. Mas sei que nem sempre é assim. Na maioria das vezes, nos sentimos escravos da rotina e isso sempre me aborreceu.
Certa vez, conversando sobre isso com meu pai, ele me disse: "Minha filha, essa mesma rotina que você acha chata também nos protege. Imagine se nossos dias fossem sempre cheios de surpresa, de emoções. Nosso coração não suportaria. Observe a natureza: o sol nasce e se põe todos os dias, as marés avançam e recuam, tudo obedece a uma rotina divina. E é essa certeza de que no dia seguinte as coisas vão se repetir que nos dá a tranquilidade necessária para viver..."
Nunca mais me esqueci dessa conversa e de mais essa lição que aprendi.
Hoje, domingo à noite, livre daquela rotina que me acompanhou por anos a fio, confesso que me senti completamente "desprotegida"...
Durante toda a minha infância e adolescência, tivemos como hábito jantar na casa de meus avos paternos. Com vontade ou sem vontade, íamos todos, os 6 filhos. Foi uma maneira que minha mãe encontrou de nos ensinar a preservar o sentido de "família". E a primeira coisa que fazíamos, ao chegar, era pedir a benção a meu avô, coisa que ele não dispensava! Veio a adolescência e, com ela, a vontade de desobedecer a essa rotina. Queria "não ter que ir" pra lá, queria minhas noites de domingo só pra mim. Mas minha mãe nunca perdeu tempo com caprichos de adolescente... Sem brigar e nem sequer levantar a voz pra gente, nós simplesmente fazíamos a vontade dela, mesmo sem entender, mesmo sem querer. Ela era tão mansa que a gente não tinha coragem de lhe desagradar!
Numa dessas vezes em que fui pra lá contra a minha vontade, cheguei emburrada, me sentei numa cadeira perto da porta e não fui falar com meu avô. Vendo-me ali, imediatamente minha mãe se aproximou de mim e disse pra eu ir falar com meu avô. De cara feia, respondi que não ia, pois estava com raiva. Ela disse ainda mais baixinho: "Seu avô não tem nada a ver com sua raiva. Você vai lá, cumprimenta ele e depois pode voltar pra cá, até passar sua raiva." Fiquei com tanta vergonha de mim mesma que me levantei e fui pedir a benção a meu avô. E minha raiva passou. Minha mãe tinha razão. As pessoas não têm nada a ver com nossa raiva, com nossos aborrecimentos! Foi outra bela lição que aprendi com ela!
Depois que meus avós morreram, eu quis incutir nos meus filhos esse mesmo hábito. Passei a ir com eles jantar na casa de meus pais todos os domingos. Queria que meus filhos também aprendessem a preservar o sentido de família.
Foram mais de 30 anos dividindo com eles minhas noites de domingo. Depois que eles ficaram velhinhos, passei a ir todas as noites. Fiz disso a minha rotina, o meu "ofertório" de gratidão.
Hoje, domingo à noite, senti um vazio enorme. Perdi as razões que me levavam até aquela casa tão querida...! Agora, todas as noites de domingo serão "só minhas", como tantas vezes desejei aos 15 anos...
E agora, que elas são todas minhas, confesso que não sei o que fazer com elas. Como posso chamar de "minhas" algo que nunca me pertenceu? O que de fato tornava minhas noites de domingo especiais era a certeza de que eles estavam ali, à minha espera. Fiz da minha rotina a rotina deles. E juntos, nos sentíamos protegidos, cativos daquelas horas em que dividíamos alegrias e recordações.
Sim, pai, a rotina por vezes nos maltrata, mas mil vidas eu daria para experimentar de novo, ainda que por breves instantes, aquela mesma rotina: a sopa, a carne, o inhame, o café... a cama, os colírios, a garrafa, o remédio, a lâmpada, o lençol... E no fim de tudo, a sua voz cheia de ternura: "Deus lhe abençoe, minha filha..."
Quanto vazio, pai, quanto silêncio, quanta saudade!...😢
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