NOSSA CASA
- Lilian Rocha
- 1 de mar. de 2018
- 5 min de leitura
“Nossa próxima casa, Petrônio, quero que seja coberta, de laje, numa rua calçada e perto do nosso local de trabalho, pra gente não depender de carro...”
Era essa uma das únicas “exigências” que minha mãe fazia a meu pai. Morávamos, naquele tempo, no Conjunto dos Bancários, pertinho da Hermes Fontes, mais precisamente na Av. Enos Sadock, 62, numa casa rosa de esquina. O “Conjunto dos Bancários” se resumia a dois quarteirões incompletos e as casas eram escolhidas de acordo com o tamanho da família do bancário. Nossa rua, toda de piçarra, só possuía dois trechos e em frente às casas, apenas terrenos baldios. Nenhuma árvore, nenhum vestígio de verde.
Meus pais trabalhavam no centro da cidade. Ele, na praça General Valadão, onde ficava o Banco do Brasil, e ela, na praça Fausto Cardoso, na Delegacia Fiscal, portanto, bem distante do "longínquo" bairro São José, daquele tempo, onde estávamos morando. Estudávamos, todos os 6 filhos, no “Educandário Brasília”, também distante dali, e voltávamos a pé da escola, pois nossos horários não coincidiam com os de meu pai. Enfim, era perfeitamente compreensível aquela exigência de minha mãe...
E meu pai, então, pôs-se a procurar casa pra comprar... E nos muitos sábados em que tiravam pra “correr as casas”, como dizia minha mãe, eu ia com eles. Ainda me lembro de algumas casas que visitamos. Meu pai se encantava logo à primeira vista, mas minha mãe tinha o olhar mais aguçado, percebia pequenos defeitos que poderiam vir a se tornar maiores e não o deixava fechar negócio. Um dia, quando ele voltou pra casa, disse a ela, radiante: – Mara, achei a “sua” casa. Fica na rua Boquim, é toda de vidro na frente e... – De que casa você está falando, Petrônio? Não me diga que é aquela de vidro, que tem um jardim na frente, entrada pra garagem... – Sim, é aquela mesmo! – confirmou ele, satisfeito com a alegria dela. – Petrônio, todo dia que eu vou trabalhar, eu passo por ali e fico namorando aquela casa. Mas ela não é pro nosso bico não... É uma casa nova, grande, no centro, a gente não tem condições de comprar...
Mas não teve acordo. No sábado seguinte, fomos correr a casa por dentro. A casa era linda e bem maior que a nossa. Em vez de uma, tinha duas salas. Uma na entrada, toda de mármore branco e a outra mais imponente, toda de sinteco escuro, cercada de imensas janelas de vidro que davam para a rua. Seguindo pela sala de mármore, dávamos na cozinha, também de mármore. Uma cozinha enorme, toda equipada de armários azuis, tanto debaixo da pia, como presos nas paredes, o que significou um ponto muito positivo aos olhos de minha mãe... Depois da cozinha, foi a vez de conhecermos os quartos, todos de sinteco brilhante, localizados ao longo do corredor. O primeiro quarto ficava do lado direito, em frente a um banheiro todo azul, com azulejos até o teto. Em seguida, do lado esquerdo, vinha o segundo quarto, bem maior que o primeiro, já com armário embutido azul, enorme, de 4 portas. “O primeiro quarto poderia ser o dos meninos e esse daqui, o das meninas, pois cabem 3 camas...” – deixou escapar minha mãe, já fazendo planos...
E no final do corredor, vinha o quarto de casal, também equipado com um armário embutido enorme, de 4 portas, todo rosa. Mas o mais surpreendente de tudo, foi quando o moço, que estava nos mostrando a casa, abriu a última porta do armário e nos convidou para entrar. Demos de cara com um banheiro lindo, todo cor de rosa, com azulejos até o teto... Um banheiro “secreto”, disfarçado de armário! Aquilo era o máximo pra qualquer criança! Depois dos quartos, fomos conhecer o resto da casa. Havia uma área no fundo, com dois quartos, um banheiro e uma lavanderia. E como se não bastasse, ele nos fez subir por uma escada de 15 degraus para conhecer um pequeno “apartamento” que ele havia construído em cima da garagem, onde havia um quarto, uma saleta e um banheiro. Ficamos encantados com tanto espaço! Enfim, meu pai tinha encontrado uma casa que atendia em cheio aos desejos de minha mãe. Tinha laje, duas caixas de água enormes, um jardim, uma rua calçada e o que era melhor, ficava no centro da cidade! E apesar de não ser uma casa “pro bico deles”, meus pais toparam a parada, financiaram a casa em 20 anos e fecharam o negócio!
No dia 29 de junho de 1970, nos mudamos para lá. Os móveis que vieram da outra casa ficaram “sobrando” naquela casa. Mas com o orçamento ainda mais apertado por causa do financiamento, por algum tempo a sala principal ficou vazia, sem móveis, para alegria dos meus irmãos menores que espalharam seus brinquedos e fizeram dela a “sala de brincar”... Pouco mais de um mês depois, minha irmã completou 15 anos e a festa foi comemorada em nossa “casa nova”, com direito a baile na garagem e tudo, como era costume nessa época...
E enquanto minha mãe curtia a casa dos seus sonhos, meu pai tratava de construir lá em cima o escritório dos seus sonhos. Em cima da laje onde ficavam os dois quartos da área externa, ele mandou levantar umas paredes, cercou de estantes, levou todos os seus livros e discos e fez daquele pequeno recanto, o seu “sétimo céu”. Ali ele lia, ouvia música, escrevia para os jornais e produzia seus programas de rádio.
E silenciosamente, nossa casa foi assistindo ao vagaroso passar dos anos... A sala preta ganhou móveis e, mais tarde, um piano alemão, com o qual meu pai enchia de música não só a nossa casa, mas toda a rua.
Nossa casa foi palco de inúmeras festas de aniversário, refúgio das nossas dores de amor, hospedagem certa para dezenas de parentes e amigos. Ela nos viu casar e viu nascer cada um dos nossos filhos. Ali, eles brincaram e cresceram todos juntos, feito primos-irmãos. Foi ela também quem acolheu meu irmão mais velho e sua família, quando ele ficou doente, e para onde nos refugiamos, quando ele e seu filho nos deixaram... Foi nela onde meus pais foram mais felizes e onde nós assistimos ao suave envelhecer deles dois. Já bem velhinhos, ele ainda costumava perguntar a ela por que ela havia escolhido aquela casa. Só pra ouvir a mesma resposta que ele já sabia de cor: “Porque era de laje, ficava numa rua calçada e perto do nosso trabalho...” - repetia ela, sorrindo pra ele.
Foi dela que minha mãe se despediu, quando foi para o hospital pela última vez. A partir daí, “a casa de Mara”, como meu pai a chamava, nunca mais foi a mesma para ele. Mesmo tão cheia de gente, havia nela um vazio que ninguém conseguia preencher. E foi ali também que, meses mais tarde, vimos meu pai se despedir da vida, rumo ao encontro definitivo com ela.
Eis que chegou a hora também de dizermos adeus a essa casa tão querida, que foi de todos nós, e iniciarmos um novo capítulo de nossas vidas. Para muitos que não a conhecem e virem o anúncio, ela pode significar apenas uma casa com tantos metros de frente e outros tantos de fundo, que está à venda, como tantas outras... Outros podem ter o olhar mais aguçado e ver nela o local ideal para uma clínica, hotelzinho, escritório, academia ou o que mais a imaginação mandar...
Mas nós, que fazemos parte de sua história, jamais seremos capazes de mensurar quantos metros de saudade e quanto de nós mesmos estaremos deixando pra trás, juntamente com ela...

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